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O Novo Mundo livre da tirania napoleônica

Escrito por Claudia Beatriz Heynemann | Publicado: Quinta, 04 de Janeiro de 2024, 18h50 | Última atualização em Quinta, 04 de Janeiro de 2024, 19h02

Transcrição da carta de João da Costa Cordeiro a Marcos Antônio Portugal sobre o progresso das insurreições das colônias americanas. Informa que de Lisboa partem comissários ingleses e espanhóis para “ajustar as discórdias com Buenos Aires” e que os “rebeldes de Caracas tomassem o mesmo acordo”, aceitando as “prerrogativas e privilégios que pela nova Constituição são concedidos às colônias”. Defende a reconciliação das colônias espanholas com a metrópole como uma forma de manter o Novo Mundo livre da “tirania napoleônica”.

 Conjunto documental: Relatório das leituras de cartas chegadas à corte entre agosto de 1811 a janeiro de 1812 das quais transcreve alguns trechos importantes sobre ida de Charles Stuart a América Espanhola; problemas do Exército francês; insurreição das colônias americanas, notícia de aviso para que recrutas não sejam mais mandados para o Rio Grande; movimento de tropas e pessoal de comando, perdas e dificuldades de manutenção dos exércitos; sublevação de escravos.
Notação: BR RJANRIO U1.0.0.164
Data-limite: 1810 - 1810
Título do fundo: Gabinete de d. João VI
Código do fundo: U1
Data: 18 de novembro de 1811
Local: Lisboa
Folha (s): 3 e 4

Leia na íntegra esse documento

 Em carta de João da Costa Cordeiro [1] a Marcos Antonio Portugal [2]

Lisboa, 18 de novembro de 1811 

Depois de tantas impertinências, com que tenho repetido nas minhas antecedentes cartas, o susto, que me causaram os progressos da insurreição das colônias americanas [3], estimo mui cordialmente (segundo o que agora me consta) que da mediação da Inglaterra e da cooperação das tropas portuguesas, que foram em auxílio de Montevidéu [4], se vá tirando proveito, que em uma das minhas referidas cartas anunciava. Eu sei que daqui partem comissários ingleses e espanhóis para ajustar as discórdias com Buenos Aires [5] e tenho toda esperança de que tudo se concluirá em bem (se o espírito dos refratários não for inteiramente movido pelas intrigas e agentes do tirano), supostas as prerrogativas e privilégios, que pela nova constituição [6] são atribuídos às colônias. Oxalá que os rebeldes de Caracas [7] tomassem o mesmo acordo, reconhecendo na pessoa do novo chefe, que atualmente dirige a insurreição (Miranda), um aspirante a tirania da sua pátria, isto é, a dignidade de Rei da nova fábrica. A minha alma então sossegaria, porque a reconciliação das colônias espanholas contribuindo para a independência da metrópole, deixará o Novo Mundo intacto à influência do tirano, fazendo-o o asilo e refúgio da liberdade da Europa, quando a providência permitisse que ela continuasse a experimentar o flagelo da tirania napoleônica. Gravíssimas questões se movem atualmente na corte de Cádiz sobre o Príncipe, que deve presidir à Regência da Espanha: e já se propôs e de certo modo já se aprovou o que mais direitos tivesse a Coroa em ausência ou falta de Fernando VII [8]. Se as minhas conjecturas não me enganam, ou a Princesa N. Sra., ou algum de seus filhos representará ainda a casa de Bourbon [9] no trono de Felipe 5o; e isto não estará para muito tarde. (...)

Eu não quero batalha de Marengo ou Austerlitz, isto é, guerra de cortes dirigidas por ministérios tímidos e pusilânimes; quero a explosão de povos oprimidos, que defendam os direitos de sua religião, do seu Príncipe e da sua Independência até morrer. Daqui é que eu espero a ruína do tirano e a segurança da paz futura da Europa.

 [1] CORDEIRO, JOÃO DA COSTA (c.1735-18?): musicista português, foi organista e compositor da Real Capela da Ajuda. Estudou música em Nápoles quando a cidade era considerada o mais importante centro de formação de compositores de ópera italiana. Foi membro da Irmandade de Santa Cecília, a associação dos músicos de Lisboa, professor de música de integrantes da família real portuguesa e responsável pela adaptação das óperas do compositor italiano Niccolò Jommelli para os teatros da corte lusitana. Compôs músicas sacras e óperas escritas para a família real, que foram encenadas nos teatros de Lisboa, sendo responsável também pela produção dos espetáculos.

[2] PORTUGAL, MARCOS ANTONIO (1762-1830): Compositor e organicista luso-brasileiro, Marcos Portugal é autor de uma série de óperas e obras sacras, alcançando sucesso internacional ao longo de sua carreira. Em Portugal e no Brasil, destacou-se por suas composições litúrgicas, que fizeram parte do repertório de igrejas e capelas nos dois lados do Atlântico. Foi membro da Irmandade de Santa Cecília, a associação dos músicos de Lisboa, atuou na Santa Igreja Patriarcal, como mestre de música do Teatro do Salitre, mestre de solfa do Seminário da Patriarcal, mestre de música do Real Teatro de São Carlos. Dedicou peças à família real portuguesa e, com a vinda da corte para o Brasil em 1808, foi chamado por d. João para assumir o cargo de mestre de Suas Altezas Reais, encarregado de criar músicas para eventos e festividades de maior importância política, religiosa ou social em que fosse necessário a presença do Rei. Chegou ao Rio de Janeiro em 1811 para se juntar ao serviço régio. Segundo o musicólogo Mário Marques Trilha Neto, “a vinda de Marcos Portugal para junto do seu soberano no Rio pode ser compreendida como mais uma etapa na consolidação da representação do poder Real, através da música sacra e profana” (Entre óperas, castrados e perucas: as aventuras transatlânticas de Marcos Portugal. Insight Inteligência. São Paulo, 2013). Em 1821, com o retorno da Corte joanina, o compositor permaneceu no Brasil, conservando suas funções ao lado do Imperador d. Pedro I, de quem fora professor de música.

[3] INSURREIÇÃO DAS COLÔNIAS AMERICANAS: ver INSURGENTES AMERICANOS: A crise de legitimidade política causada pela invasão francesa na península ibérica e a imposta abdicação de Fernando VII ao trono espanhol em 1808, proclamando José Bonaparte seu sucessor, pôs em questão a estrutura de poder na América espanhola. Como ser uma colônia sem uma metrópole e mesmo como continuar uma monarquia sem um monarca legitimamente reconhecido? Esse vácuo de poder deu origem às Juntas de Governo, formadas a partir dos cabildos (assembleias) americanos. Apesar de jurarem fidelidade ao Rei espanhol destituído, foi a primeira forma de governo autônomo na América. As Juntas eram formadas pelos criollos – elite econômica americana, descendente de espanhóis, porém excluída dos altos cargos do governo colonial, destinado aos chapetones (espanhóis que viviam na colônia). Estes últimos, conscientes de sua autonomia política e econômica no momento, além de fortemente inspirados pelas Luzes, a independência das Treze Colônias e a Revolução Francesa, vão se organizar para permanecer no controle, ameaçados com o reestabelecimento do absolutismo espanhol. Em 1813, Fernando VII volta ao trono e revoga os poderes das Juntas, numa tentativa de recolonização dos territórios americanos. Porém, a elite criolla não quis mais aceitar o domínio hispânico, impulsionando lutas em diversas ex-colônias para expulsar os espanhóis e conquistarem sua independência. Sob as lideranças de figuras como Simón Bolívar, José de San Martín, Miguel Hidalgo, Manuel Belgrano e Bernardo O’Higgins, os chamados “libertadores da América”, conseguiram reunir grandes exércitos populares na luta contra as forças espanholas. Insurgentes americanos, traidores de lesa-majestade, infiéis, são pechas pelas quais seriam caracterizados aqueles que lutaram contra a autoridade metropolitana..

[4] MONTEVIDÉU: ver CISPLATINA: Os interesses da Coroa portuguesa na Banda Oriental, atual República do Uruguai, eram antigos e foram reforçados com a vinda da Corte para o Brasil em 1808 e pela conjuntura política europeia após a derrota de Napoleão Bonaparte. A conquista da região platina era vista como uma forma de compensação das perdas que Portugal sofreu no Congresso de Viena (1814-15): a restituição de Caiena à França e a recusa por parte da Espanha em restituir a vila de Olivença aos portugueses. Por outro lado, o processo de emancipação das colônias hispano-americanas deu lugar a uma série de novas composições políticas e rupturas, como a do governador de Montevidéu, Francisco Javier de Elío que em 1808 rompe com o vice-rei, se alia a Madri e forma uma junta de governo autônoma. Pressionado pela reação de Buenos Aires, que se aliara ao estancieiro José Artigas, da elite local, Elío aceitou a força “pacificadora” enviada pelo príncipe regente, em 1811. O mesmo Artigas se voltaria contra Buenos Aires, controlando Montevidéu e outras províncias. Mais uma vez as tropas de d. João, sob os protestos da Inglaterra e da Espanha, invadem a Banda Oriental em nome do risco representado pelo projeto de Artigas, de formar uma confederação e que poderia contaminar o sul da América portuguesa, área sensível dessa fronteira. A conquista de Montevidéu pelas tropas luso-brasileiras comandadas pelo general Carlos Frederico Lecor ocorreu em 1817. O território se tornaria província do Brasil com o nome de Província Cisplatina (província de Montevidéu) após a realização do Congresso Cisplatino que votou a favor da sua anexação ao Reino Unido de Portugal e Algarves em 1821. Com a independência do Brasil, a Província Cisplatina continuou a integrar o Império e seria ainda objeto de outros conflitos na região do Prata. Em 1828 a Banda Oriental ou Província Cisplatina se tornou a República Oriental do Uruguai.

[5] DISCÓRDIAS COM BUENOS AIRES: no século XIX, Brasil e o Vice-reino do Rio da Prata, cuja capital era a cidade de Buenos Aires, se envolveram em uma série de conflitos pela hegemonia na bacia do rio da Prata, território estrategicamente importante devido à sua localização, sendo uma rota comercial vital para a troca de mercadorias entre a América do Sul, a Europa e outros destinos. Entre 1811 e 1812, tropas portuguesas comandadas por d. João VI vão ocupar a região da Cisplatina (atual Uruguai), território de grande importância para a hegemonia na região. A campanha militar foi um pedido de ajuda do governo de Montevidéu para tentar evitar anexação do território às Províncias Unidas do Rio da Prata, território que buscava sua independência desde 1810, liderado por Buenos Aires. Em 1816, uma nova ocupação luso-brasileira levou à anexação da Banda Oriental do Uruguai ao Reino do Brasil. As tensões com Buenos Aires iriam aumentar ainda mais, levando à Guerra da Cisplatina (1825-1828) que opôs o Império do Brasil e a recém-criada confederação das Províncias Unidas do Rio da Prata (atual Argentina) pelo controle da Cisplatina, mas que teve como resultado a independência da região, com a criação da República Oriental do Uruguai, a partir da assinatura da Convenção Preliminar de Paz em 27 de agosto de 1828.

[6] NOVA CONSTITUIÇÃO: refere-se à CONSTITUIÇÃO DE CÁDIZ: constituição espanhola elaborada pelas Cortes Generales y Extraordinarias em março de 1812. As Cortes reuniram-se me Sevilha, ainda durante a ocupação francesa em território peninsular, com poderes constituintes. O caráter liberal da constituição popularmente conhecida como La Pepa, por ter sido aprovada no dia da festa de S. José, influenciou a revolução liberal do Porto de 1820 e a elaboração da constituição também liberal para Portugal. Quando Fernando VII foi restaurado no trono, em março de 1814, em consequência da derrota francesa na Guerra Peninsular, foi obrigado a jurar a nova Constituição. No entanto, em maio do mesmo ano, o monarca, com o apoio de forças conservadoras, rejeitou a constituição e mandou prender os líderes liberais, alegando que as Cortes teriam agido durante sua ausência e sem autorização, reestabelecendo o absolutismo na Espanha.

[7] REBELDES DE CARACAS: a expressão refere-se aos insurgentes da cidade de Caracas, província da capitania geral da Venezuela, que, em 19 de abril de 1810, após a renúncia do capitão general Vicente Emparan instituem a Junta Suprema de Caracas, assumindo provisoriamente a soberania interna na ausência do Rei espanhol, deposto pelo exército de Napoleão em 1808. A formação da Junta foi a primeira experiencia venezuelana de governo autônomo, considerada por muitos historiadores como o início das lutas pela independência na colônia espanhola. A formação das Juntas de Governo por toda América espanhola é fruto da crise do regime monárquico espanhol a partir da abdicação e prisão de Fernando VII pelas tropas francesas. Ainda que as Juntas tivessem como bandeira a defesa dos direitos do Rei espanhol, na prática, se converteram no primeiro mecanismo de expressão e autonomia política dos criollos (descendentes de espanhóis nascidos na América). Se, em um primeiro momento, essa liberdade conseguida pelos antigos cabildos (conselhos municipais formados pela elite local) não colocasse em discussão a fidelidade ao Rei e a emancipação da Espanha, o vácuo de poder na Península Ibérica juntamente a uma nova atmosfera liberal, influenciada sobretudo pela Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos da América, abriu caminho para a possibilidade de uma separação da metrópole. Segundo o historiador Reinaldo Rojas, é o curto o período que transcorre entre “os sucessos autonomistas de 19 de abril de 1810 a declaração independentista” no ano seguinte. Em junho, a Junta convoca eleições para deputados provinciais e em julho de 1811 se estabelece o Congresso Constituinte em Caracas, responsável pela declaração de independência em 5 de julho de 1811 (Rojas, Reinaldo. La Junta Suprema de Caracas de 1810: nación, autonomía e independencia. Revista Historia y Memoria, vol. 2, 2011).

[8] FERNANDO VII (1784-1833): Rei da Espanha era filho de Carlos IV e de Maria Luisa de Parma. Ascendeu ao poder após a revolta de Aranjuez, que marcou a derrota do primeiro-ministro Manuel Godoy e culminou, em 1808, com a abdicação de Carlos IV em seu favor. Pouco depois, foi destronado por Napoleão, sendo sucedido no trono por José Bonaparte, irmão do imperador francês. Preso e enviado para a França, foi libertado após a revolta nacionalista que expulsou os franceses em 1814. Reconduzido ao poder, revogou a constituição liberal (1812) e instaurou um regime absolutista, perseguindo mesmo os que haviam lutado por sua volta ao trono. Foi sob seu reinado que a Espanha enfrentou a onda revolucionária que resultou na perda da maioria de suas possessões na América.

[9] CASA DE BOURBON: Originária da região da atual França, reinou também na Espanha, além de deter ducados e títulos de nobreza em diversos países da Europa. Sua ascensão em território hispânico deu-se antes mesmo da unificação do estado espanhol, com a conquista do reino de Navarra por Henrique IV, rei de França, que substituiu a Casa de Valois. A dinastia seria derrubada e restaurada na Espanha diversas vezes ao longo da história, desde a subida de Felipe V ao trono espanhol, no início do século XVIII, até os dias atuais. A ascensão de Felipe V representou a predominância da região de Castela sobre outros reinos hispânicos, assim como a vitória do modelo centralista que se impôs durante o século XVIII.

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