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Órfãos e Expostos no Império Luso-Brasileiro

Sala de aula

Escrito por Mirian Lopes Cardia | Publicado: Quarta, 23 de Mai de 2018, 14h02 | Última atualização em Segunda, 11 de Junho de 2018, 13h29

Alvará régio sobre o cofre dos órfãos

Alvará ordenando que na cidade da Bahia e em outras partes do Brasil onde houvesse juiz de órfãos, fosse providenciado um cofre para guarda do dinheiro, e eventuais rendimentos de propriedades dos órfãos ficando esses montantes sob a responsabilidade do tutor que assumisse o compromisso de sustentá-los. O dinheiro do cofre poderia ser utilizado pelo tutor para manter os bens dos órfãos (como engenhos, bois e escravos), este sendo obrigado a devolver as propriedades com sucesso quando o órfão atingisse a maioridade. Caso estes estivessem em situação de prejuízo, o tutor teria que arcar com as despesas. Declara-se também que esses valores não poderiam ser utilizados por nenhum governador ou ministro para nenhuma finalidade, e caso isso acontecesse, o responsável pagaria pelo bem utilizado.

Conjunto documental: Livro dourado da Relação do Rio de Janeiro. Contêm alvarás, provisões, títulos de carta e leis sobre vários objetos.
Notação: códice 934
Datas-limite: 1534-1612
Título do fundo ou coleção: Relação da Bahia
Código do fundo ou coleção: D9
Argumento de pesquisa: população, órfãos
Data do documento: 29 de janeiro de 1614
Local: Salvador
Folha(s): 112v,113 e 113v

 

Provisão de Sua Majestade[1] sobre haver cofre de órfãos[2] e ordem que se há de ter neles.

Eu, El Rei, faço saber aos que este alvará virem que eu tenho ordenado que na cidade da Bahia, em mais parte do Brasil, onde houver juiz dos Órfãos haja cofre onde se meta o dinheiro dos órfãos[3], e se corra com eles na forma de minhas Ordenações[4], como é declarado na provisão, que sobre mandei fazer, e passar em oito de novembro do ano passado de mil seiscentos e doze, e por assim haver por meu serviço, e bem dos mesmos órfãos, hei por bem, e me praz que a dita provisão, se cumpra, e haja o dito, cofre, como por ela ordeno, com declaração que quando os órfãos tivessem alguns engenhos[5], ou partidos[6] se lhes não vendam os escravos[7], bois, móvel mais fábrica necessária para serviço e cultura dos tais partidos e engenhos, e que tenham mais bois e escravos além do necessário para sobredito, se vendam e o dinheiro que por eles se der, se meta no cofre, e que neste caso se deem os negros, e bois avaliados ao tutor para granjear os engenhos e partidos, e do rendimento manter os órfãos, e que o que sobejar, se venda e meta no cofre, e que neste caso se deem os negros e bois avaliados digo e que sendo partido do quinto ao terço, e que verossimilmente não haverá grandes rendimentos, e no serviço deles poderão morrer os escravos e bois, se neste caso os tutores[8] se obrigaram a sustentar os órfãos conforme as suas qualidades, e quando forem de idade perfeita tomar lhe seus partidos na forma em que os receberem, e melhorados, e não piorados, e com todos a fábrica de bois, e escravo e neste caso só sejam os tutores entregues dos tais órfãos, e partidos, e tirados os custos, e pagas as despesas, que se alvidrarem para a criação dos órfãos, se meta [mais] no cofre, e que tendo os órfãos somente bois e escravos, sem partido algum, se vendam os tais bois e escravos, sem partido algum, se vendam os tais bois e escravos, o dinheiro se meta no cofre e dê ganho, e que os móveis se vendam sem diferença, e o dinheiro que por elas se der, se meta no cofre. Hei outrossim por bem, e me praz que o governador do dito Estado, que ora é, e ao diante for, ou quem em cargo servir, nem outro algum ministro da Justiça, e minha Fazenda[9], possa tomar nem tome dinheiro algum dos ditos órfãos do cofre deles, nem por outra via para necessidade alguma, por precisar que seja, posto que ponha penhores, sob pena que o governador, em qualquer outro ministro que tirar e tomar o tal dinheiro pagar por seus bens, e se haver por eles [executivamente] como tenho ordenado no dinheiro dos defuntos, e isto ainda que o tal dinheiro se carregue em receita sobre os meus oficiais, e se gasta em meu serviço: e mando ao dito governador, e chanceler, e desembargadores da Relação do dito Estado[10], e dos juízes e provedores dos órfãos, e quaisquer outras minhas justiças, oficiais e pessoas, a que pertencer que assim o [guardem], e façam em todo e por todo cumprir e guardar, sem dúvida nem embargo algum como neste se contem o qual se registrará nos livros da dita Relação e das Câmaras da capitania do dito Estado e o próprio se porá em boa guarda, para a todo o tempo constar como assim o tendo ordenado, e valerá com carta começada em meu nome e não passará pela chancelaria[11] sem embargo da Ordenação [2º Livro ttº 39 e 40] que dispõem o contrário, e se passou por duas vias uma só haverá efeito. João Tavares a fez em Lisboa a vinte e nove de agosto de mil seiscentos e treze. O secretário Antônio Veles [...] a fez escrever = Rei = O conde almirante = alvará porque vossa majestade ordena como se há de prover nos bens dos órfãos do Estado do Brasil[12], e que quais se há de vender e meter o dinheiro no cofre que vossa majestade tem mandado que haja, e os governadores, nem outros ministros e poderem tomar na maneira acima declarada. Para vossa majestade ver, e vai por duas vias:

Por carta de vossa majestade de oito de agosto de mil seiscentos e treze = Registrada. Antônio Veles [...] = Registrada no [Livro 6º] dos registros desta Câmara de Olinda [a folha 74] volta em vinte de dezembro de mil seiscentos e treze = Leonardo Barros. O qual traslado de provisão eu Paulo de Souza tabelião público do judicial em notas nesta vila de Olinda[13] e seus termos, por Duarte de Albuquerque Coelho[14] capitão e governador dela por El Rei Nosso Senhor fez trasladar da própria [que] ficou em poder do senhor governador, a que me reporto, e consertei por mim e com o tabelião abaixo o comigo assinado e a dita Olinda aos sete dias do mês de janeiro de mil seiscentos e quatorze = Pagou nada = O governador Gaspar de Souza[15] = Paulo de Souza [ilegível] tabelião Damião Dias de Amaral = Consertado e por mim tabelião Paulo de Souza = O qual traslado da provisão eu Francisco do Couto Escrivão da provedoria-mor trasladei de um traslado consertado assinado pelo governador Gaspar de Souza, que em seu poder tem a própria e com dois tabeliães que [mandou] ao chanceler mor Rui Mendes de Abreu, a qual tem sem eu poder, a qual me reposto nesta cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos[16] aos vinte e nove dias do mês de janeiro de mil seis centos e quatorze. Francisco Couto que o escrevi assinei = Francisco Couto.

 

[1] Segundo rei espanhol da dinastia Habsburgo, também conhecida como filipina. Filipe II, chamado “o Pio”, governou Portugal entre os anos de 1598 e 1621, durante o período da junção das duas Coroas, conhecido como União Ibérica (1580-1640). Sob o seu reinado, os portugueses tiveram de contar praticamente consigo próprios na defesa de suas possessões ultramarinas diante das incursões francesas, holandesas e inglesas. Como consequência do descaso do rei espanhol, as colônias portuguesas tiveram sua importância comercial abalada. Merecem destaque na administração de Filipe II: as Ordenações Fili (1603) – compilação jurídica resultante da revisão do código manuelino (1521) que, sem trazer muitas inovações, consolidou as leis já em vigor, respeitando as tradições e identidade portuguesas e vigorou no Brasil até 1916, com o advento do Código Civil; a criação do Conselho das Í (1604) – responsável pela centralização da administração do império ultramar português, nesse momento inserido nos vastos domínios filipinos; e o estabelecimento da paz com a Inglaterra (1604) e com as Províncias Unidas (1609).

[2] A presença de um cofre para órfãos variou muito no Império português: existiu em praticamente todas as regiões, desde a metrópole até aos domínios ultramarinos, e vigorou no Brasil até o século XX. A legislação portuguesa estabelecia que em cada cidade ou vila houvesse um cofre dos órfãos, que seria um cofre ou arca onde permanecessem guardados os pertences de valor dos órfãos, principalmente dinheiro e joias. O juiz dos órfãos, o escrivão e o depositário (tutor ou curador) teriam uma chave e o cofre só poderia ser aberto na presença dos três. O cofre ficava com o tutor, mas poderiam ser removidos para lugares seguros estabelecidos pelo juiz, nas Casas de Misericórdia, e até mesmo na sede do Juízo dos Órfãos. Em Lisboa, o cofre dos órfãos foi extinto em 1757, passando os bens a serem guardados em um depósito público geral, e em cada Juízo deveria haver livros que registrassem todas as entradas e saídas dos bens, que deveriam ser também registrados nos inventários. Para que os cofres ou depósitos fossem abertos era preciso a presença das autoridades do Juízo dos Órfãos e de seus tutores. Os escrivães tinham direito a receber uma taxa sobre cada bem que entrava ou saía dos cofres, que variou bastante, chegando a valer ¼ do valor do bem, até ⅛, um percentual mais habitual. Os depositários, depois de dois anos, poderiam ser substituídos ou renovados. Cada vez que um curador precisasse ser trocado, era necessário fazer um novo inventário dos bens dos órfãos e criar novas entradas nos livros dos órfãos. Caso o provedor, o juiz, o escrivão, o tesoureiro dos órfãos ou o tutor depositário falhassem em suas obrigações, por negligência ou desonestidade, poderiam ser punidos com multa, prisão, degredo e a perda do ofício, além de terem que pagar os prejuízos dos órfãos. Quando estes atingissem a maioridade (25 anos) ou se fossem emancipados antes disso, receberiam de volta os valores depositados no cofre, com as correções necessárias. Os valores do cofre chegaram a ser amplamente utilizados para empréstimo pelo Estado, que pagaria juros a serem revertidos para a manutenção e educação do órfão.

[3] As Ordenações Filipinas (1603) estabeleceram que o pátrio poder cabia ao pai, responsável pela tutoria e curadoria dos filhos até os 25 anos, quando atingiam a maioridade, salvo quando fossem emancipados ou se casassem antes de completar esta idade. Segundo esta lei a orfandade se aplicava no caso do filho ou filha menor de 25 anos perder o pai, ou o pai e a mãe; a perda somente desta não caracterizava o filho como órfão, mas como "menor" apenas, já que não havia necessidade da nomeação de um tutor/curador, sendo este o próprio pai. Para fins jurídicos, órfãos e menores tinham os mesmo direitos (à herança) e as mesmas restrições (necessidade de autorização para contrair matrimônio e de tutoria para administração dos bens). Não necessariamente a orfandade advinha da morte do pai; a ausência deste também significava que filhos ilegítimos fossem considerados órfãos, uma vez que somente as mães fossem conhecidas. Na prática cotidiana, até mesmo em certos casos legais, o termo órfão se aplicava àquele que perdia o pai ou a mãe, ou ambos, conforme a definição dada pelo padre dicionarista Raphael Bluteau já em 1712. Em princípios do século XIX esse significado mais amplo passa a ser cada vez mais usado, apesar da alteração formal da instituição do pátrio poder ter-se dado somente no século XX.

[4] Trata-se de um conjunto de leis que refletiam o esforço do aparelho do Estado em registrar oficialmente as normas jurídicas vigentes nos diversos reinados, pois a dispersão das leis vigentes e aplicáveis trazia uma inevitável incerteza quanto à sua aplicação e, portanto, prejuízos à vida administrativa, política, econômica e jurídica de Portugal e seus domínios ultramarinos. As ordenações afonsinas, promulgadas por d. Afonso V (1432-1481), constituíram a primeira destas compilações, sendo substituídas pelas ordenações manuelinas (1521) e pelas filipinas (1603), compiladas sob o governo de Felipe I à época da União Ibérica, e vigoraram até 1868 em Portugal.

[5] Durante o período colonial o termo “engenho” designava o mecanismo usado para moer a cana, no início do processo de preparo do açúcar. Passa a referir-se ao complexo no qual se fabricava açúcar e toda área da fazenda – as terras, as plantações, a capela, a casa senhorial, a senzala, as ferramentas, e a moenda – posteriormente, desde a segunda metade do século XIX, conceito cunhado por historiadores e estudiosos da agricultura e economia coloniais. Os engenhos de cana (moendas) se dividiam em dois tipos: os engenhos reais, movidos a água – que apresentavam maior riqueza e complexidade, empregavam um grande número de oficiais de serviço e trabalhadores especializados, contavam com grande contingente de mão de obra escrava, grande plantação própria (além de comprar a produção de engenhos menores) e possuíam toda a maquinaria para produzir o açúcar, cobrindo todo o processo – e os movidos a tração animal – menores em tamanho e capacidade de produção, exigiam investimentos inferiores, também chamados engenhocas ou trapiches, e mais utilizados na produção de aguardente. Os engenhos, como unidades produtivas, tiveram um papel central na colonização, ocupação e povoamento do território da colônia. A maior parte da primeira geração de senhores de engenho não era formada por nobres ou grandes investidores, mas por plebeus que auxiliaram na conquista e povoamento da costa brasileira. Com o tempo, a expansão do açúcar e o consequente aumento da sua importância para a economia metropolitana, o status do senhor de engenho cresceu proporcionalmente. Os engenhos constituíam verdadeiros núcleos populacionais, em torno dos quais e de suas capelas, se formavam vilas e se construíam as defesas das fronteiras das capitanias. Os grandes engenhos tinham em torno de 60 a 100 escravos, e muito poucos ultrapassavam a marca de 150-200 cativos, dos quais, em média, 75% trabalhavam nos campos, 10% na manufatura do açúcar, e o restante dedicava-se a atividades domésticas ou não relacionadas ao trato açucareiro. Os engenhos, assim como o açúcar, tinham grande valor, mas um alto custo: as terras, o beneficiamento, os instrumentos, os escravos, as construções encareciam a produção, que apresentava, em geral, baixos rendimentos, descontados os gastos do senhor. A maior parte dos engenhos era muito pouco ou não lucrativa, fazia o suficiente para sua subsistência, ou lucrava mesmo com a produção da aguardente. Algumas poucas unidades geraram fortunas; a maioria rendia pouco e muitos acumularam grandes dívidas. Ao contrário do que comumente se pensa, a capitania que mais concentrava engenhos, em quantidade e grandeza, era a Bahia, e não Pernambuco, seguida pelo Rio de Janeiro, e então por aquela. A lucratividade variava muito, de acordo com: a safra de cana (influenciada pelas condições climáticas e de solo); as epidemias que assolavam vez ou outra a população escrava e de trabalhadores pobres; a falta de gêneros (como lenha, água, animais) e as dívidas que se acumulavam. Apesar das dificuldades, os engenhos não eram abandonados, e a produção açucareira, embora oscilasse de acordo com as ofertas e demandas do mercado europeu e suas colônias, não perdeu sua importância no Brasil. Os engenhos representavam um microcosmo da sociedade aristocrática rural, apoiada no poder patriarcal e político do senhor, base da sociedade brasileira em construção, bem analisada por Gilberto Freyre em sua obra. Mais do que representação de riqueza, o engenho tinha grande importância simbólica, um signo de poder e um sinal de distinção. Os senhores de engenho dominaram a política local durante décadas e, até o século XVIII, ocuparam a maior parte dos postos de oficial nas milícias locais, formando durante todo o período colonial um poderoso grupo de pressão, uma vez que a metrópole precisava de sua lealdade e de seus investimentos para manter a colônia e torná-la rentável. Havia uma hierarquia entre os senhores de engenho, que dependia basicamente da tradição da família e do tipo de propriedade que possuíam. Embora a maior parte dos lucros resultantes da produção de açúcar se concentrasse na atividade comercial, era a produção agrícola que concedia prestígio e poder.

[6] Lotes divididos no terreno da fazenda para plantação de cana-de-açúcar ou a cana produzida nessa área. Era possível ser proprietário de partidos sem, no entanto, ser dono do engenho. Havia lavradores pobres agregados à propriedade e à empresa de um senhor de engenho que arrematavam os partidos de cana desses pequenos produtores.

[7] Pessoas cativas, desprovidas de direitos, sujeitas a um senhor, como propriedades dele. Embora a escravidão na Europa existisse desde a Antiguidade, durante a Idade Média ela recuou para um estado residual. Com a expansão ultramarina, no século XV, revigorou-se, mas adquiriu contornos bem diferentes e proporções muito maiores. No mundo moderno, um grupo humano específico, que traria na pele os sinais de uma inferioridade na alma estaria destinado à escravidão. Diferentemente da escravidão greco-romana, onde certos indivíduos eram passíveis de serem escravizados, seja através da guerra ou por dívidas, o sistema escravocrata moderno era mais radical, onde a escravidão passa a ser vista como uma diferença coletiva, assinalada pela cor da pele, nas palavras do historiador José d'Assunção Barros, “um grupo humano específico traria na cor da pele os sinais de inferioridade” (“A Construção Social da Cor - Desigualdade e Diferença na construção e desconstrução do Escravismo Colonial. XIII Encontro de História da Anpuh-Rio, 2008). Muitos foram os esforços no sentido de construir uma diferenciação negra, buscando no discurso bíblico, justificativas para a escravidão africana. No Brasil, de início, utilizou-se a captura de nativos para formar o contingente de mão de obra escrava necessária a colonização do território. Por diversos motivos – lucro com a implantação de um comércio de escravos importados da África; dificuldade em forçar o trabalho do homem indígena na agricultura; morte e fuga de grande parte dos nativos para áreas do interior ainda inacessíveis aos europeus – a escravidão africana começou a suplantar a indígena em número e importância econômica quando do início da atividade açucareira em grande extensão do litoral brasileiro. Apesar disso, a escravidão indígena perduraria por bastante tempo ainda, marcando a vida em pontos da colônia mais distantes da costa e em atividades menos extensivas. O desenvolvimento comercial no Atlântico gerou, por três séculos, a transferência de um vasto contingente de africanos feitos escravos para a América. A primeira movimentação do tráfico de escravos se fez para a metrópole, em 1441, ampliando-se de tal modo que, no ano de 1448, mais de mil africanos tinham chegado a Portugal, uma contagem que aumentou durante todo o século XV. Tal comércio foi um dos empreendimentos mais lucrativos de Portugal e outras nações europeias. Os negros cativos eram negociados internacionalmente pelos europeus, mas estes, poucas vezes, tomavam para si a tarefa de captura dos indivíduos. Uma vez que o aprisionamento de inimigos e sua redução ao estado servil eram práticas anteriores ao estabelecimento de rotas comerciais ultramarinas, em geral consequência de guerras e conflitos entre diferentes reinos ou tribos, os comerciantes passaram a trocar estes prisioneiros por produtos de interesse dos grandes líderes locais (os potentados) e por apoio militar nos conflitos locais. Embora a escravização de inimigos fosse uma prática anterior à chegada dos europeus, deve-se salientar que o estatuto do escravo na África era completamente diferente daquele que possuía o escravo apreendido e vendido para trabalho nas Américas. Nos reinos africanos, a condição não era indefinida e nem hereditária, e senhores chegavam a se casar com escravas, assumindo seus filhos. O comércio com os europeus transformou os homens e sua descendência em mercadoria sem vontade, objeto de negociação mercantil. Os europeus passaram a instigar guerras e conflitos locais, de forma a aumentar a captura de possíveis escravos, desintegrando a antiga estrutura econômica e social dos reinos africanos. A produção historiográfica sobre a escravidão vem crescendo nos últimos anos, não só escravismo colonial, mas também o comércio de cativos para a própria Europa, sobretudo na bacia mediterrânea, têm sido estudados. A presença de escravos negros em Portugal tornar-se-ia uma constante no campo mas, sobretudo, nas cidades e vilas, onde podiam trabalhar em obras públicas, nos portos (carregadores), nas galés, como escravos de ganhos e domésticos, entre outros. No século XV, os negros africanos já tinham suas habilidades reconhecidas tanto em Portugal quanto nas ilhas atlânticas (arquipélagos de Madeira e Açores). Localizadas estrategicamente e com solo de origem vulcânica, logo foi implantado um sistema de colonização assentado na exploração de bens primários, como o açúcar.  A escravidão foi um dos alicerces essenciais do sucesso desse empreendimento, que acabou sendo transferido para o Brasil, quando essa colônia se mostrou economicamente vantajosa. Dessa forma, no litoral da América portuguesa logo seria implantado o sistema de plantation açucareiro, com a introdução da mão de obra africana. E, ao longo do processo de colonização luso, o trabalho escravo tornou-se a base da economia colonial, presente nas mais diversas atividades, tanto no campo quanto nas cidades. Uma das peculiaridades da escravidão nesse período é representada pelos altos gastos dos proprietários com a mão de obra, muitas vezes mais cara do que a terra. Iniciar uma atividade de lucro demandava um alto investimento inicial em mão de obra, caso se esperasse certeza de retorno. A escravidão e a situação do escravo variavam, dentro de determinados limites, de atividade para atividade e de local para local. Mas de uma forma geral, predominavam os homens, já que o tráfico continuou suas atividades intensamente pois, ao contrário do que ocorria na América inglesa, por exemplo, houve pouco crescimento endógeno entre a população escrava na América portuguesa. Rio de JaneiroBahia e Pernambuco foram os principais centros importadores de escravos africanos do Brasil. Além de formarem a esmagadora maioria da mão de obra nas lavouras, nas minas, nos campos, e de ganharem o sustento dos senhores menos abastados realizando serviços nas ruas das vilas e cidades (escravos de ganho), preenchendo importantes nichos da economia colonial, os escravos negros também eram recrutados para lutar em combates. A carta régia de 22 de março de 1766, pela qual d. José I ordenou o alistamento da população, inclusive de pardos e negros para comporem as tropas de defesa, fez intensificar o número dessa parcela da população nos corpos militares. Ingressar nas milícias era um meio de ascensão social, tanto para o negro escravo quanto para o forro. A escravidão é um tema clássico da historiografia brasileira e ainda bastante aberto a novas abordagens e releituras. A perspectiva clássica em torno do tema é a do “cativeiro brando” e o caráter benevolente e não violento da escravidão brasileira, proposta por Gilberto Freyre em Casa Grande e senzala no início da década de 1930. Contestações a essa visão surgem na segunda metade do século XX, nomes como Florestan Fernandes, Emília Viotti, Clóvis Moura, entre outros, desenvolvem a ideia de “coisificação” do negro e as circunstâncias extremamente árduas em que viviam, bem como a existência de movimentos de resistência ao cativeiro, como é o caso das revoltas de escravos e a formação dos quilombos. Já perspectivas historiográficas recentes reviram essa despersonalização do escravo, considerando-o como agente histórico, com redes de sociabilidade, produções culturais e concepções próprias sobre as regras sociais vigentes e como os negros buscaram sua liberdade, contribuindo decisivamente para o fim da escravidão.

[8] A função do tutor no mundo luso-brasileiro foi compilada pela primeira vez em lei nas Ordenações Afonsinas entre 1446 e 1448, muito inspiradas pelo direito romano. Tais ordenações tratavam dos encargos e obrigações dos tutores – então chamados guardadores – e estabeleceram as bases do que se firmou com as Ordenações Filipinas em 1603. Nesta compilação, os termos tutor e curador aparecem como sinônimos, ao passo que guardador cai em desuso. A diferença entre o tutor e o curador, estabelecida pelo direito romano, previa que o primeiro fosse responsável pela pessoa do órfão ou incapaz e, o segundo, se ocupasse dos bens do mesmo. Na prática, no Império português, os dois termos eram usados para designar a mesma pessoa e as funções se sobrepunham, sendo, basicamente, “promover com zelo e exatidão em favor de pessoa impedida o negócio que lhe é encarregado”, podendo ser órfão, idoso ou deficiente. Os tutores eram responsáveis por prover educação e subsistência aos órfãos, cuidar de seus bens até que estes atingissem a maioridade (25 anos), garantindo o retorno do patrimônio inalterado com os rendimentos previstos ao legítimo dono, e até mesmo, promover e autorizar o casamento dos menores de idade. Não era raro que irmãos pudessem ter tutores diferentes ou que um mesmo órfão tivesse mais de um curador, caso herdasse bens imóveis em mais de uma região no Reino, ficando cada um responsável por uma localidade. Os tutores poderiam ser uma pessoa indicada pelo pai ou pelo avô no testamento, normalmente da família, mas não obrigatoriamente, chamado tutor testamentário. Poderiam ser também, parentes próximos homens, salvo poucas exceções, possuidores de posses e capazes de gerir os bens dos órfãos sem prejuízo a eles, chamados tutores legítimos. Ainda existiam os tutores dativos: pessoas indicadas para a função pelos alcaides e alvasis, que atuavam como juízes no âmbito municipal, até a criação do cargo de juiz de órfãos pelo Código Filipino, que passou a ser o encarregado de nomear e confirmar tutores, bem como de fiscalizá-los. Embora a lei previsse penas muito duras aos tutores que não cumprissem com suas obrigações ou negligenciassem o cuidado com os órfãos e seus bens, havia muitos casos não previstos que eram encaminhados diretamente aos secretários de Estado e ao próprio monarca, como no caso de troca de tutor ou curador, ou mesmo substituição no caso de falecimento ou incapacidade deste. Caso a mãe morresse, a tutela era automaticamente revertida ao pai, que se tornava curador dos bens dos filhos. No caso de o pai falecer, o órfão poderia ficar com a mãe legítima e natural, caso esta não se casasse novamente. Se contraísse matrimônio, automaticamente perdia o direito à tutela dos filhos, que passavam a algum parente mais próximo, preferencialmente o avô, e depois a outros familiares mais próximos ao órfão. Ao longo do século XIX, houve forte pressão de advogados e juízes para que a tutela do órfão seguisse naturalmente para a mãe, e somente na incapacidade desta, para avós ou outros parentes, o que somente se concretizou amplamente no Brasil com a criação do Código Civil em 1916, já no período republicano.

[9] Instituição fiscal criada em Portugal, no reinado de d. José I, pelo alvará de 22 de dezembro de 1761, para substituir a Casa dos Contos. Foi o órgão responsável pela administração das finanças e cobrança dos tributos em Portugal e nos domínios ultramarinos. Sua fundação simbolizou o processo de centralização, ocorrido em Portugal sob a égide do marquês de Pombal, que presidiu a instituição como inspetor-geral desde a sua origem até 1777, com o início do reinado mariano. Desde o início, o Erário concentrou toda a arrecadação, anteriormente pulverizada em outras instâncias, padronizando os procedimentos relativos à atividade e serviu, em última instância, para diminuir os poderes do antigo Conselho Ultramarino. Este processo de centralização administrativa integrava a política modernizadora do ministro, cujo objetivo central era a recuperação da economia portuguesa e a reafirmação do Estado como entidade política autônoma, inclusive em relação à Igreja. No âmbito fiscal, a racionalização dos procedimentos incluiu também novos métodos de contabilidade, permitindo um controle mais rápido e eficaz das despesas e da receita. O órgão era dirigido por um presidente, que também atuava como inspetor-geral, e compunha-se de um tesoureiro mor, três tesoureiros-gerais, um escrivão e os contadores responsáveis por uma das quatro contadorias: a da Corte e da província da Estremadura; das demais províncias e Ilhas da Madeira; da África Ocidental, do Estado do Maranhão e o território sob jurisdição da Relação da Bahia e a última contadoria que compreendia a área do Rio de Janeiro, a África Oriental e Ásia. Por ordem de d. José I, em carta datada de 18 de março de 1767, o Erário Régio foi instalado no Rio de Janeiro com o envio de funcionários instruídos para implantar o novo método fiscal na administração e arrecadação da Real Fazenda. Ao longo da segunda metade do século XVIII, seriam instaladas também Juntas de Fazenda na colônia, subordinadas ao Erário e responsáveis pela arrecadação nas capitanias. A invasão napoleônica desarticulou a sede do Erário Régio em Lisboa. Portanto, com a transferência da Corte para o Brasil, o príncipe regente, pelo alvará de 28 de junho de 1808, deu regulamento próprio ao Erário Régio no Brasil, contemplando as peculiaridades de sua nova sede. Em 1820, as duas contadorias com funções ultramarinas foram fundidas numa só: a Contadoria Geral do Rio de Janeiro e da Bahia. A nova sede do Tesouro Real funcionou no Rio de Janeiro até o retorno de d. João VI para Portugal, em 1821.

[10] Também conhecido como Tribunal da Relação do Brasil (até a criação da Relação do Rio de Janeiro em 1751), foi o primeiro tribunal de 2ª instância no Brasil, somando-se às Relações do Porto e de Goa, além da Casa de Suplicação de Lisboa, como as principais instituições judiciais superiores do império português. Apesar de criado efetivamente em 1609, desde 1588 já se pretendia instalar uma corte de apelação nos territórios americanos, quando se redigiu o primeiro regimento da instituição, que foi a base do regulamento de 1609, dentro do plano de modernização e legalização da burocracia estatal empreendido por Felipe II para todo o império luso-espanhol. A princípio funcionou por menos de vinte anos, até 1826, sendo reestabelecido em 1652, tendo encerrado suas atividades aparentemente durante o período em que tanto a Bahia quanto Pernambuco foram invadidos e comandados pelos holandeses. A principal atribuição da Relação consistia em julgar a 2ª instância, já que todos os recursos de casos no Brasil eram encaminhados para Lisboa, o que era demorado e custoso, a fim de melhorar e acelerar a justiça entre os colonos, além de contribuir para a centralização, pelo governo metropolitano, da burocracia e aparelho judicial colonial. Era também uma forma de a Coroa tomar conta mais amiúde da colônia, diminuindo os poderes dos donatários. Órgão colegiado, na segunda fase, o Tribunal contava com oito desembargadores, entre eles um chanceler, um ouvidor-geral e um procurador da Coroa, além de oficiais, e o presidente seria o vice-rei geral do Brasil, e estava subordinado diretamente à Casa de Suplicação de Lisboa, que serviu de modelo para sua organização. A seleção desse conjunto de letrados formados e treinados para a função foi uma tarefa difícil para a Coroa, que precisava confiar nesses membros para representa-la e ao mesmo tempo torna-los distintos e respeitáveis pela população muito avessa a obedecer às leis e à ordem, além da pequena elite colonial, que já dera sinais de insatisfação com a presença da justiça da metrópole passando por cima da local. A maior parte das ações que chegavam a Relação eram processos criminais (crimes passionais e de sedução, além de assassinatos pelos mais diversos motivos), disputas sucessórias, disputas cíveis (como brigas por terras e propriedades, contestações de contratos de dízimos, repressão ao contrabando, e ao comércio ilegal de pau-brasil), além de questões de tesouro (como fraudes e evasão fiscal). Os casos tratados prioritariamente eram os que envolviam diretamente a Coroa e a Casa Real. Desse modo, pode-se dizer que o Tribunal da Relação do Brasil (ou da Bahia) exerceu não somente funções judiciais (atuando ainda como juízes itinerantes pelas capitanias e responsáveis por investigações especiais), mas também funções administrativas, informando e aconselhando o rei sobre os acontecimentos e negócios da colônia, conduzindo devassas e administrando, por exemplo, missões especiais como a coleta de 1 % de impostos sobre as vendas para a construção de igrejas ou obras pias.

[11] A regulamentação em 1609, da Relação da Bahia ou Relação do Estado do Brasil, como por vezes foi chamado esse tribunal superior, criou entre os magistrados, o cargo de chanceler, que presidia o tribunal. Era o mais antigo dos juízes e cabia-lhe substituir o governador-geral na direção da Relação, quando este se ausentava da cidade de Salvador. Possuía, dentre outras incumbências, analisar todas as cartas e sentenças dadas pelos desembargadores da RelaçãoEra também juiz dos cavaleiros, quando os casos envolviam as ordens militares e era ele mesmo um cavaleiro, como assinala Stuart B. Schwartz. Com a instalação da Relação do Rio do Janeiro, em 1751, o cargo de chanceler passou a existir igualmente nessa Corte.

[12] Uma das antigas divisões administrativas e territoriais da América portuguesa: Estado do Brasil e Estado do Maranhão, posteriormente, Estado do Grão-Pará e Maranhão. Criados em 1621, ainda sob o reinado de Filipe III da Espanha (durante a União Ibérica), vigoraram até meados do século XVIII, quando a governação pombalina promoveu a centralização administrativa da colônia. O Estado do Brasil compreendia capitanias de particulares e capitanias reais (incorporadas à Coroa por abandono, compra ou confisco), e um conjunto de órgãos da administração colonial, semiburocrático que passa a se tornar mais profissional depois da segunda metade do século XVIII, com competências fazendária, civil, militar, eclesiástica, judiciária e política. O Estado do Maranhão existiu com esta denominação entre 1621 e 1652, e 1654 e 1772, e foi criado para suprir as dificuldades de comunicação com a sede do Estado do Brasil, a cidade de Salvador, aproveitando sua proximidade geográfica com Lisboa, e diminuir as ameaças de ataque estrangeiro à foz do rio Amazonas. Em 1772 o Estado foi desmembrado em duas capitanias gerais e duas subalternas: Pará e Rio Negro, e Maranhão e Piauí. É importante ressaltar ainda que, embora Portugal visse seus estados na América como um conjunto, esta visão não era compartilhada pelos colonos que moravam aqui, que não viam o Brasil como um todo e não percebiam unidade na colônia. Apesar de "Brasil" ser, nos dias de hoje, corriqueiramente usado para denominar as colônias portuguesas na América, durante o período colonial, o termo referia-se somente às capitanias que faziam parte do Estado do Brasil, onde ficava o governo-geral das colônias, primeiro na cidade da Bahia e depois no Rio de Janeiro. As capitanias que compunham o Estado do Brasil, depois da separação do Maranhão e suas subalternas, eram do sul para o norte: capitania de Santana, de São Vicente, de Santo Amaro, de São Tomé, do Espírito Santo, de Porto Seguro, de Ilhéus, da Baía de Todos os Santos, de Pernambuco, de Itamaracá, do Rio Grande e do Ceará. No início do século XIX, o Brasil, já sem as divisões de Estado internas, era formado pelas seguintes capitanias: São José do Rio Negro, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande (do Norte), Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, GoiásMato GrossoMinas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São PauloSanta Catarina e São Pedro do Rio Grande. Em 1821, quase todas as capitanias se tornaram províncias e algumas capitanias foram agregadas em só território, deixaram de existir ou foram renomeadas. A partir daí, tivemos as províncias do Grão-Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Cisplatina.

[13] Criada em 1537 pela Carta de Foral concedida a Duarte Coelho Pereira, donatário da capitania de Pernambuco, a vila de Olinda foi erigida em posição privilegiada, sobre colinas, e a primeira construção foi o Castelo de Duarte Coelho, que servia como fortaleza para a defesa do povoado e do porto do Recife de possíveis ataques de estrangeiros pelo mar. Em torno da fortaleza, foram sendo erigidas as principais construções públicas: a Igreja da Sé, a Câmara Municipal, a cadeia, conventos de diversas ordens religiosas, como carmelitas, franciscanos, beneditinos, o Colégio dos Jesuítas e as casas dos moradores que desciam as encostas e vales da região. As primeiras atividades econômicas da região foram a extração do pau-brasil e, depois, o plantio da cana e sua transformação em açúcar nos engenhos que até hoje marcam a paisagem da região. Olinda foi capital e sede do governo da capitania de Pernambuco até 1827, com exceção do período da ocupação holandesa, entre 1630 e 1654, quando a cidade foi incendiada, ficando quase em ruínas, enquanto o governo passava para o Recife. A reconstrução da vila só começou em 1664 e arrastou-se ao longo dos séculos XVII e XVIII. Entre 1710 e 1711, eclodiu uma revolta provocada pela ascensão do Recife à condição de vila, que significava a perda de poder da elite senhorial olindense para os chamados "mascates", comerciantes do porto do Recife que desejavam maior autonomia e incentivos para o comércio. Apesar da ofensiva de Olinda, os mascates do Recife tiveram mais sucesso: a elevação à vila prevaleceu e esta prosperou, enquanto a vila de Olinda perdia importância e sua economia entrava em declínio. No início do oitocentos, Olinda ainda era cercada por engenhos, sítios e propriedades rurais. Em 1800, a fundação do Seminário de Olinda recuperou um pouco da importância perdida para o Recife que, apesar de não ser capital oficial da província, posição alcançada somente em 1837, era na prática a sede administrativa. Em 1827, a cidade recebe uma das duas primeiras faculdades de Direito do país independente (a outra em São Paulo), que foi transferida para a nova capital em 1854. Olinda passava então a ser uma cidade de veraneio para os habitantes do Recife e, durante a segunda metade do século XIX e ao longo do XX, recebeu melhorias como a chegada das ferrovias, dos bondes, da água potável e da eletricidade. Em 1982, foi declarada Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela UNESCO, sendo uma das mais bem preservadas cidades coloniais do país.

[14] Conde de Pernambuco, marquês de Bastos, foi o 4º donatário da capitania de Pernambuco, entre os anos 1603 e 1658. A capitania foi doada, em 1534, a Duarte Coelho, seu avô, e permaneceu na família Albuquerque Coelho até que a filha única do conde de Pernambuco casou-se com Francisco de Paula de Portugal e Castro. Duarte de Albuquerque, como era chamado, foi o donatário de Pernambuco durante o período das invasões holandesas, recebeu a capitania em 1603, quando chegou à maioridade, mas chegou ao Brasil somente em 1624, quando participou na Restauração da Bahia, seguindo para suas terras em 1831 para tentar reconquistá-las. Permaneceu no Brasil até 1638, quando foi para Madri, onde viria a falecer. Por esta ocasião, deixou seu irmão Matias de Albuquerque Coelho no comando das tropas, como Superintendente de Guerra. Após a reconquista do território, a Coroa passou a administrar a capitania, embora ainda pertencesse aos herdeiros de Duarte. Apesar de ter tido um papel de coadjuvante nas guerras contra os holandeses, publicou, em 1654, na Espanha, As memórias diárias da guerra do Brasil, sobre o período em que a capitania esteve sob domínio holandês e em guerra contra os colonos do Brasil (1624-1654).

[15] Governador geral do Brasil entre 1612 e 1617, durante a União Ibérica, era sobrinho de Cristóvão de Moura, 1º marquês de Castelo Rodrigo, nome importante na corte de Felipe II. Gaspar de Souza e o pai, Álvaro de Souza, prestaram muitos serviços aos Moura e ao rei. Seu pai serviu na Índia e foi membro do Conselho do rei. Teve destacada participação na batalha do Alcacer-Quibir, no Marrocos, em 1578, comandando a armada portuguesa. Foi preso e pagou seu resgate com recursos próprios, o que lhe valeu diversas comendas e tenças, como ter sido nomeado fidalgo cavaleiro, cavaleiro da Ordem de Cristo, além de ter recebido algumas mercês pecuniárias em nome dos serviços prestados para auxílio em seus empreendimentos. Uma dessas mercês visava financiar sua vinda ao Brasil em 1612, quando assumiu o posto de governador-geral. Foi casado com d. Maria de Menezes, filha de d. João da Costa, alcaide-mor e comandante mor de Castro Marin. Chegou a ter tanto prestígio com Felipe III que o rei garantiu a transmissão de seu cargo a seu genro, quando sua filha se casasse, desde que fosse com alguém de mesma posição – o que não aconteceu. Por sua morte, em 1627, recebeu a mercê da capitania de Caetés, no Estado do Maranhão, que passou diretamente a seu filho Álvaro de Souza. Este chegou a receber o almejado título de conde de Anciães, no momento da Restauração portuguesa, mas, devido aos estreitos laços com a família real espanhola, não conseguiu que o título fosse reconhecido em Portugal, já sob reinado dos Bragança.

[16] A fundação da cidade de Salvador data de 1549, sendo, portanto, a primeira cidade administrativa criada por Portugal na América, com a instalação do governo-geral na capitania da Bahia. A 29 de março, data simbólica de aniversário da cidade, desembarcou na enseada do Porto da Barra, o primeiro governador-geral, Tomé de Souza, que trouxe as instruções régias de como fundar uma cidade. Ficou a cargo do mestre Luiz Dias executar as primeiras construções. Inicialmente erguida sobre uma colina, visando a defesa contra ataques de índios e estrangeiros, no século XVII, a cidade, embora ainda pequena, já se dividia entre a parte alta e a baixa. Contava apenas com uma praça, ao redor da qual se erguiam os prédios da administração colonial e o palácio do governador, depois vice-rei. Com auxílio de ordens religiosas como a dos jesuítas e beneditinos, que construíram igrejas, praças, capelas, escolas e conventos, os limites da cidade se ampliavam rapidamente. Salvador também foi a primeira diocese da América portuguesa. A cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, como era também chamada, tinha importância política, econômica e comercial de destaque devido a seu grande porto, por onde circulava intenso comércio transatlântico e interno, intensificado depois da abertura dos portos do Brasil. O viajante inglês Thomas Lindley refere-se à cidade como “empório do universo” dada sua centralidade econômica, local de encontro de rotas comerciais internas e externas à capitania e entreposto fundamental na redistribuição de produtos importados para outras capitanias e na saída de produtos locais para o exterior, uma face atlântica, que contemplava desde o comércio com a Europa, África e Ásia, como dizia Russell-Wood. Enquanto de Salvador eram exportadas mercadorias como o açúcar, o tabaco, couro, a aguardente, o melado, o algodão, o arroz, o cacau, o café, a madeira e o azeite de baleia, de Portugal, importavam-se gêneros manufaturados, como tecidos, louças, ferragens, pólvora, chumbo, alcatrão, farinha de trigo, vinho, vinagre e azeite de oliva; da Índia, tecidos e especiarias e, da Áfricaescravos e cera. Salvador foi uma das principais cidades escravistas na América portuguesa, um dos principais eixos do tráfico com o golfo da Guiné, principalmente com a baía de Benim (ALENCASTRO, L. F. África, números do tráfico atlântico. In: SCHWARCZ, L. M., GOMES, F. (Orgs). Dicionário da escravidão e liberdade, 2018). As trocas inter-regionais, feitas com mercadorias importadas, sobretudo escravos, que chegavam através do porto de Salvador, empregavam navios e outras embarcações em número superior aos que faziam conexão com Lisboa. De acordo com Moema Angel, autora de Visitantes estrangeiros na Bahia Oitocentista (1980), chegando a Salvador, os viajantes dos séculos XVIII e XIX podiam evocar com admiração a beleza das igrejas e dos conventos, os palácios do governador, do arcebispo e da câmara, bem como a riqueza do seu comércio. Mas não deixavam de ver aí, também, uma “nova Guiné”, “uma cidade negra” (Souza, E., Marques, G. e Silva, H. (org.). Salvador da Bahia: retratos de uma cidade atlântica / Salvador, Lisboa: EDUFBA, CHAM, 2016). Com a chegada da Corte, algumas mudanças favoreceram a cidade, como a criação de manufaturas, da primeira tipografia e gazeta, e aumento das atividades culturais, como o teatro, a dança e a música. Salvador foi a capital do Brasil até 1763, quando a sede do vice-reinado foi transferida para o Rio de Janeiro.

 

Joana Rosa contra o barão de Manique

Registro de requerimento de Joana Rosa da tutoria dos filhos que teve com Francisco da Cunha e Menezes, governador da Índia e sogro do barão de Manique. Os filhos de Francisco da Cunha e Menezes haviam sido dados ao barão de Manique, que assumiu a tutoria dos irmãos ilegítimos de sua mulher. Em resposta, a Mesa do Desembargo resolve que uma mulher da condição de Joana Rosa, "mãe natural", não poderia nesse caso assumir a tutoria dos filhos que tinham como pai um fidalgo com tantos serviços prestados à Coroa. Com o fim de evitar qualquer constrangimento ao barão de Manique, a Mesa recomenda a indicação de novo tutor.

Conjunto documental: Livros de consultas da Mesa do Desembargo do Paço
Notação: códice 250, vol. 2
Datas-limite: 1814-1816
Título do fundo ou coleção: Negócios de Portugal
Código do fundo ou coleção: 59
Argumento da pesquisa: população, órfãos
Data do documento: 12 de setembro de 1814
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 80v

 

Sobre o requerimento de dona Joana Rosa em que quer se lhe confira a tutoria dos filhos naturais[1] que teve de Francisco da Cunha e Meneses[2] que se havia dado ao barão de Manique[3] do Intendente, cunhado dos mesmos menores.

Parece à Mesa[4] que posto que algumas vezes se tenha conferido as mães naturais a tutela de seus filhos ilegítimos[5], na falta de parentes capazes para dela serem encarregados, e isto na classe de pessoas que não pertencem a ordem de conhecida nobreza, porque pela ordem Lº 4º, t º2 [fl] 83º, somente são chamadas para a tutela[6] dos filhos as mães ou avós legítimas, tendo os requisitos determinados na mesma lei, contudo estes exemplos não habilitam a suplicante para ser tutora de seus filhos, que estando como estão legitimados a requerimento de seu pai, pertencem pela legitimação à sua ilustre família e por isso seria muito indecoroso que uma mulher da condição da suplicante fosse a tutora dos filhos de um fidalgo da primeira Nobreza[7] e Ordem da Grandeza deste reino, e que teve tanta representação nos eminentes lugares que Sua Alteza Real[8] lhe confiou tanto neste reino como nos seus domínios ultramarinos: também lhe não confere direito algum para a mesma tutela a cláusula que com excesso dos poderes conferidos pelo pai dos menores na sua procuração se escreveu na escritura da doação dos limitados bens, que pouco excedem o valor de três contos de reis, de que o suplicante os administrasse durante a menoridade dos filhos donatários, e que o mesmo doador sendo perguntado na forma da lei, para declarar se era contente, que se confirmasse a doação, ratificasse a mesma escritura, já porque esta ratificação somente tinha por objeto a insinuação da doação, e já porque a referida cláusula, quando fosse derivada da vontade do doador, não se pode considerar, como nomeação de tutora, pois que ainda que houvesse essa nomeação em testamento, como era para a tutela e filhos naturais, e não legítimos, necessitava de ser confirmada pelo respectivo juiz dos Órfãos[9] na conformidade da dita ordenação [ilegível], se a pessoa nomeada, fosse para essa pertencente na frase da mesma lei, cujos requisitos não tem a suplicante devendo por consequência ser escusado o seu requerimento. E para evitar todo o escrúpulo e cessarem as imputações que se fazem ao barão do Manique, tutor atual, será conveniente que Sua Alteza Real seja servido ordenar, que o provedor dos Órfãos e Capelas[10], da Classe dos Estranhos, nomeie tutor, que seja capaz para a mesma tutela. Lisboa 17 de janeiro de 1814.

S.A.R. = Como parece = Palácio do Rio de Janeiro 12 de setembro de 1814.

 

[1] A legislação portuguesa estabelecida nas Ordenações Filipinas seguia o modelo do direito romano, em combinação com o direito canônico, a respeito do que seriam os filhos naturais e o papel e direitos destes na sociedade. Esses se opunham aos filhos adotados ou também chamados “de criação”, eram filhos biológicos de um casal. Por sua vez, os filhos naturais poderiam se dividir entre legítimos, legitimados ou ilegítimos. Os primeiros seriam os concebidos e nascidos de pais casados perante a Igreja Católica, sem impedimentos legais ou morais. Os ilegítimos naturais eram os filhos que foram concebidos por pais sem impedimentos legais para o casamento, não eram adúlteros ou aparentados, mas não eram casados (viúvos ou solteiros), o que os tornava moralmente indesejados pelas famílias. Estes filhos poderiam ser legitimados pelo matrimônio do casal ou pelo reconhecimento de, pelo menos, um dos pais, o que chegaria a torná-los herdeiros de alguns bens. De acordo com as normas cristãs, os pais eram obrigados a assegurar-lhes o sustento e cuidados mínimos. Eram normalmente mencionados em testamento, embora dificilmente tivessem os mesmos direitos e atenções recebidos pelos filhos legítimos, embora chegassem às vezes a receber terras, cargos militares de elevada patente, ingressar no serviço eclesiástico e até obter cargos e títulos de menor porte. Às filhas, eram assegurados casamentos em famílias de menor importância, mas ainda assim, “bons casamentos”, ou eram destinadas aos recolhimentos e à vida religiosa.

[2] Militar português, foi governador e capitão-general da capitania de São Paulo entre 1782 e 1786, da Índia nos anos de 1786 a 1794 e da Bahia no período de 1802 a 1805. Quando foi governador da Índia, abriu devassa para apurar uma denúncia de levante em Goa em 1787, conhecida como a Sublevação dos Pintos, que, como a inconfidência mineira, não chegou a acontecer, sendo sufocada antes. Em 1807, o regente d. João o elevou a tenente-general e o nomeou para seu Conselho de Guerra. Neste mesmo ano, foi indicado para o Conselho de Regência de Portugal, que governou o reino no lugar do príncipe e da rainha, quando ambos seguiram para o Brasil com o restante da Corte. Os membros do Conselho de Regência foram também os responsáveis por coordenar as ações de guerra contra as tropas napoleônicas auxiliados pelos britânicos. Cunha de Menezes exerceu, ainda, o cargo de presidente da Mesa do Desembargo do Paço, foi fidalgo da Casa Real e comendador da Ordem de Cristo. Embora não tenha se casado, deixou uma filha natural legitimada por ele e que levou seu nome, Maria da Glória da Cunha e Menezes, que se casou com o barão de Pina Manique. O requerimento de Joana Rosa, retirado do livro de consultas da Mesa do Desembargo do Paço aponta para a existência de outros dois filhos naturais de Menezes, mas que não foram legitimados por este em vida. Faleceu ainda exercendo o governo provisório de Portugal.

[3] 2º senhor, 1º barão e 1º visconde de Manique do Intendente, Conselheiro do Rei, membro do Conselho Ultramarino, desembargador da Relação do Porto. Português, filho do célebre intendente de Polícia de Lisboa, Diogo de Pina Manique. Casou-se com d. Maria da Glória de Cunha Menezes, nascida em São Paulo, filha natural e legitimada de Francisco da Cunha e Menezes, governador e capitão-general dessa capitania, das Índias e da Bahia. Pina Manique ainda ocupou o cargo de deputado da Mesa de Consciência e Ordens, foi comendador da Ordem de Cristo e sucedeu o pai como alcaide-mor do distrito de Portalegre (Lisboa). Membro de uma das mais distintas famílias de Portugal, que prestaram grandes serviços à Coroa, recebeu os títulos de barão em 1801, concedido por d. Maria I, e de visconde em 1818, pelo já rei d. João VI.

[4] Criada no Rio de Janeiro, após a transferência da Corte portuguesa ao Brasil, pelo alvará de 22 de abril de 1808, era um órgão superior da administração judiciária. O recém-criado tribunal encarregava-se dos negócios que, em Portugal, pertenciam a quatro secretarias: os tribunais da Mesa do Desembargo do Paço, da Mesa da Consciência e Ordens, do Conselho do Ultramar e da Chancelaria-Mor da Corte e do Reino. O alvará de criação do Desembargo do Paço e da Mesa da Consciência e Ordens, definia ambos como um mesmo tribunal, no entanto, na prática, mantiveram funcionamento e normas distintas. Referente ao Conselho Ultramarino, sua jurisdição englobava apenas os temas que não fossem militares, uma vez que estes já eram contemplados pelo Supremo Conselho Militar, uma de suas atribuições foi a confirmação das sesmarias da Corte e província do Rio de Janeiro, que até então eram dadas pelos vice-reis, pelos governadores e pelos capitães-generais de diversas capitanias.

[5] Comuns na vida familiar do mundo luso-brasileiro foram mais frequentes na colônia do que na metrópole. No Brasil, entre um terço e metade das crianças batizadas (sem considerar as que nasciam e não chegavam a sê-lo) eram tidas como ilegítimas e ocorriam tanto nas famílias mais pobres, quanto nas mais abastadas e bem-nascidas. De fato, a ilegitimidade era vista de modo diferente entre homens e mulheres, ricos e pobres. Os filhos ilegítimos eram aqueles gerados fora do casamento religioso, e havia uma divisão e distinção importante entre eles. Havia os ilegítimos “naturais”, aqueles gerados por casais não ligados pelo matrimônio, mas não impedidos para tanto, ou seja, solteiros ou viúvos, que por vezes eram legitimados, registrados e reconhecidos pelos pais, na maior parte das vezes, para fins de continuação do nome e de herança. No entanto, os mais frequentes eram os ilegítimos gerados de relações que impediam o casamento, fosse por adultério, por razões eclesiásticas ou por relações incestuosas. Os “filhos de danado coito”, como eram também chamados, dificilmente seriam reconhecidos pelos pais, pois eram frutos de relações moralmente reprovadas e até mesmo de crimes, no caso do adultério. Muitos desses ilegítimos “espúrios” eram filhos de escravas, criadas ou mulheres livres e pobres com homens e senhores casados e também filhos de mulheres casadas com amantes. O destino destes era quase sempre os hospitais, as casas de assistência pública e as rodas de expostos e, quase nunca, chegavam a saber quem eram os pais, especialmente as mães, já que entre as mulheres, ainda mais das camadas mais altas, ter filhos ilegítimos não naturais era falta grave e poderia resultar em punições fatais. Entre os homens de posses, a ilegitimidade, embora moralmente condenada, era socialmente tolerada, reflexo de uma sociedade patriarcal na qual a promiscuidade masculina era considerada até certo ponto “normal”. Os ilegítimos naturais eram mais reconhecidos pelos pais, mesmo os frutos de relações inter-raciais. Apenas uma minoria chegava a herdar bens e ascender socialmente, evidenciando uma tendência da sociedade colonial de ser mais tolerante com este comportamento do que a metrópole. Durante muito tempo, a necessidade de povoar o território e de ter mais braços para o trabalho fez com que esta prática fosse bastante disseminada. Em Portugal, no entanto, os processos de legitimação eram mais complexos, por envolver heranças de terras, senhorios, títulos e cargos no governo, e eram solicitados diretamente à Coroa, que expedia cartas régias de legitimação, desde que de filhos naturais e não espúrios. Entre os mais pobres, a legitimação era mais fácil de ser aceita, já que as questões de herança não eram um problema, e os braços a mais para o trabalho eram mais necessários. Para a população feminina escrava os filhos ilegítimos frutos de relações com os senhores podiam representar uma vida diferente para a criança, que apesar de seguir a condição do ventre da mãe, poderia ser libertada pelo pai, ou até mesmo ser dada como livre, se exposta à Misericórdia, já que todas as crianças recolhidas, mesmo as de cor, eram automaticamente tidas como livres.

[6] A função do tutor no mundo luso-brasileiro foi compilada pela primeira vez em lei nas Ordenações Afonsinas entre 1446 e 1448, muito inspiradas pelo direito romano. Tais ordenações tratavam dos encargos e obrigações dos tutores – então chamados guardadores – e estabeleceram as bases do que se firmou com as Ordenações Filipinas em 1603. Nesta compilação, os termos tutor e curador aparecem como sinônimos, ao passo que guardador cai em desuso. A diferença entre o tutor e o curador, estabelecida pelo direito romano, previa que o primeiro fosse responsável pela pessoa do órfão ou incapaz e, o segundo, se ocupasse dos bens do mesmo. Na prática, no Império português, os dois termos eram usados para designar a mesma pessoa e as funções se sobrepunham, sendo, basicamente, “promover com zelo e exatidão em favor de pessoa impedida o negócio que lhe é encarregado”, podendo ser órfão, idoso ou deficiente. Os tutores eram responsáveis por prover educação e subsistência aos órfãos, cuidar de seus bens até que estes atingissem a maioridade (25 anos), garantindo o retorno do patrimônio inalterado com os rendimentos previstos ao legítimo dono, e até mesmo, promover e autorizar o casamento dos menores de idade. Não era raro que irmãos pudessem ter tutores diferentes ou que um mesmo órfão tivesse mais de um curador, caso herdasse bens imóveis em mais de uma região no Reino, ficando cada um responsável por uma localidade. Os tutores poderiam ser uma pessoa indicada pelo pai ou pelo avô no testamento, normalmente da família, mas não obrigatoriamente, chamado tutor testamentário. Poderiam ser também, parentes próximos homens, salvo poucas exceções, possuidores de posses e capazes de gerir os bens dos órfãos sem prejuízo a eles, chamados tutores legítimos. Ainda existiam os tutores dativos: pessoas indicadas para a função pelos alcaides e alvasis, que atuavam como juízes no âmbito municipal, até a criação do cargo de juiz de órfãos pelo Código Filipino, que passou a ser o encarregado de nomear e confirmar tutores, bem como de fiscalizá-los. Embora a lei previsse penas muito duras aos tutores que não cumprissem com suas obrigações ou negligenciassem o cuidado com os órfãos e seus bens, havia muitos casos não previstos que eram encaminhados diretamente aos secretários de Estado e ao próprio monarca, como no caso de troca de tutor ou curador, ou mesmo substituição no caso de falecimento ou incapacidade deste. Caso a mãe morresse, a tutela era automaticamente revertida ao pai, que se tornava curador dos bens dos filhos. No caso de o pai falecer, o órfão poderia ficar com a mãe legítima e natural, caso esta não se casasse novamente. Se contraísse matrimônio, automaticamente perdia o direito à tutela dos filhos, que passavam a algum parente mais próximo, preferencialmente o avô, e depois a outros familiares mais próximos ao órfão. Ao longo do século XIX, houve forte pressão de advogados e juízes para que a tutela do órfão seguisse naturalmente para a mãe, e somente na incapacidade desta, para avós ou outros parentes, o que somente se concretizou amplamente no Brasil com a criação do Código Civil em 1916, já no período republicano.

[7] A ideia de nobreza está relacionada à distinção garantida por costumes e por lei, que diferencia os indivíduos nas sociedades de corte, pertencentes a certas famílias e com funções de mando, daqueles que executavam os trabalhos físicos, considerados a plebe, e dos religiosos. Essa distinção perpetuava a estrutura estamental herdada dos tempos medievais, na qual os nobres, entre eles o rei, estavam no topo da hierarquia social, eram responsáveis pela proteção e justiça, além de terem a função de guerreiros e, posteriormente, também de administradores. Já os plebeus, eram os que trabalhavam em ofícios mecânicos, na terra, no comércio e em outras atividades. A nobreza poderia ser dividida, grosso modo, em nobreza de sangue – natural, passada por herança familiar – e a nobreza civil ou política – conquistada pela prestação de serviços relevantes ao Estado e ao rei. Os nobres de sangue, em Portugal, eram normalmente oriundos de famílias tradicionais, ainda do período de formação do Estado português durante a Baixa Idade Média. Eram considerados nobres de linhagem somente após três gerações da família, passando a ter direito a um brasão de armas. A concessão de títulos de nobreza no Império português foi um fenômeno dos tempos modernos, principalmente depois da expansão ultramarina, que agraciava, inicialmente, aqueles que faziam grandes esforços para a conquista de novas terras e mais poder para a monarquia, especialmente se para isso expunham-se a risco de morte e se o faziam com seu próprio patrimônio. Era um prêmio pela dedicação ao Estado e uma compensação financeira para os gastos, usado habilmente pelos reis portugueses para incentivar empresas ultramarinas, sem aumentar as despesas do Estado. A partir do século XVIII, a nobreza civil passou a exercer cargos de governança no reino e nos domínios ultramarinos, sem, entretanto, ferir o estatuto nobre, já que esta forma de trabalho não implicava em exercer força física. Essa ampliação nos quadros acabou por criar um problema de “distinção de qualidade” entre os nobres. O Estado reformou as leis que definiam as formas de tratamento de nobres e fidalgos nos anos de 1597, 1739 e 1759, com vistas a restabelecer o equilíbrio de importância, sobretudo da nobreza de sangue, e a se adaptar aos novos tempos. Dentro dos quadros de linhagem, criou-se o título de grandeza, que elevava a “grandes” os nascidos nobres de famílias mais antigas, tradicionais e ricas, e que gozavam de maiores privilégios e proximidade aos reis. No Brasil, a nobreza adquiriu contornos muito particulares: em primeiro lugar, porque, praticamente, não existiam nobres de nascimento – a maior parte era de altos funcionários da Coroa que conquistaram o título por emigrarem para conquistar, ocupar e produzir na colônia. Eram chamados “principais” ou “nobreza da terra”descendentes dos primeiros conquistadores, pioneiros desbravadores das novas possessões da coroa portuguesa. Esta elite senhorial, além de recebedora de mercês e de terras (capitaniassesmarias), também desempenhava funções administrativas, ocupando cargos que, pouco a pouco, foram sendo criados na estrutura administrativa colonial. A presença de índios e negros relativizou, da mesma forma, a pureza do sangue da nobreza brasileira, já que muitos herdeiros dos capitães-mores e governadores dos Estados tinham também descendência indígena e mestiça. A escravidão, ainda, adicionou novas variáveis, tornando qualquer um que não fosse escravo e de cor passível, merecedor de receber tratamento diferenciado e criou um imperativo particular da colônia: para almejar ser nobre era preciso, além das riquezas e propriedades habituais, ter escravos. Essa “nobreza da terra”, composta basicamente de indivíduos que se distinguiam não tanto pelo nascimento, mas por ocupar cargos importantes, ter escravos e posses, podiam ser senhores de terras, comerciantes de grosso trato de grandes capitais, desde que não exercessem pessoalmente trabalhos físicos.

[8] Segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[9] Autoridade judiciária, tinha a função de zelar pelos órfãos de sua jurisdição e seus bens, inclusive registrando em livro próprio quantos órfãos havia e de que bens dispunham, além de verificar se os mesmos estavam sendo bem geridos. Aos juízes dos órfãos competia uma quantidade enorme de atribuições e atividades, até mais do que aos juízes ordinários e de fora. Entre as competências constam  nomear e confirmar tutores e curadores, prover os órfãos de bens para garantir seu sustento, fazer inventários, avaliar os bens e realizar as partilhas, fazer vender imóveis e arrendar bens de raiz, cuidar para que os rendimentos seguissem para a educação do órfão, conceder cartas de emancipação e licenças de casamento. Eram responsáveis por assegurar com que todos os órfãos tivessem tutor até um mês depois do falecimento do pai ou da mãe, fossem familiares ou não, e por fiscalizar e verificar a idoneidade do tutor ou curador. Se sobre os tutores fosse constatada alguma irregularidade ou má conduta, o juiz deveria destituí-los e obrigá-los a restituir os bens dos órfãos, além de nomear um novo tutor. Era obrigação dos juízes fiscalizar e vigiar os valores que entravam e saíam do cofre dos órfãos e verificar o patrimônio dos tutores, além de fiscalizar o trabalho realizado pelo juiz anterior e denunciá-lo em caso de irregularidades, e arrecadar impostos e taxas para o Juízo. Possuía jurisdição sobre todas as ações cíveis que envolvessem os órfãos, fossem como autores ou réus, até a sua emancipação. Estruturalmente, o juízo dos órfãos era constituído pelo respectivo juiz, pelos escrivães, pelo tutor geral dos órfãos, pelo contador e pelos avaliadores e partidores. Ainda cabia a eles fiscalizar seus oficiais subordinados, escrivão, ajudante de escrivão, oficiais de registro, tesoureiro, contador, avaliador, partidor e porteiro do auditório – considerando que uma mesma pessoa poderia acumular mais de uma função – e prestar contas de tudo o que acontecia sob sua jurisdição ao Provedor, responsável, por sua vez, por fiscalizar as atividades do juiz dos órfãos.

[10] O provedor era imbuído de especiais funções quanto à vigilância e observância dos estatutos gerais e públicos de uma instituição, à obediência aos decretos, alvarás, avisos e resoluções. No Brasil o cargo foi criado em 1548, por ocasião da instalação do governo-geral, tendo por objetivo cuidar dos assuntos relativos à administração fazendária. Existiram várias categorias de provedores, todos subordinados ao provedor-mor (mais alta instância administrativa, responsável pela arrecadação, contabilidade, fiscalização e convocação dos oficiais da Fazenda) e que atuaram em instâncias diferenciadas, entre as quais se podem mencionar a Alfândega, a Justiça, a Casa da Moeda, as Minas, Defuntos e Ausentes, entre outras. Nomeados pelo rei ou pelo governador-geral, os provedores eram responsáveis por acompanhar e administrar as rendas e direitos régios arrecadados, fiscalizar e registrar a movimentação comercial, cobrar os direitos, punir as irregularidades cometidas pelos oficiais de Fazenda, entre outras funções. Prestavam contas ao provedor-mor, inicialmente, e depois ao Conselho da Fazenda.

 

Providências sobre os órfãos desamparados

Consulta à Mesa do Desembargo do Paço por parte do Senado da Câmara de Lisboa a respeito das providências a serem tomadas em relação aos órfãos desamparados, sendo necessário ensiná-los ofícios mecânicos e artes liberais. Solicita edifícios que estejam sem uso onde estes deveriam exercer ofícios que atendessem às necessidades do exército e ofícios de costura. As órfãs que tivessem recebido um dote poderiam se casar com os órfãos que estivessem desempenhando seus ofícios, e assim garantir seu sustento. Porém o Senado não tinha como arcar com essas despesas, tornando-se inviável a criação dos órfãos somente por parte das Casas Pias. O Procurador da Coroa se pronunciou sobre o assunto e alegou que não havia como o Senado sustentar essa ideia, achando melhor a criação dos órfãos em casas de particulares, que receberiam uma ajuda para custear as despesas e educação. Ressalta que era preciso tomar cuidado para que a situação dos órfãos não virasse um caso da Igreja, mas permanecesse na esfera do Estado. O Desembargo do Paço também propunha que a criação dos órfãos ficasse com as casas particulares e sob a responsabilidade de um tutor.

Conjunto documental: Livros de consultas da Mesa do Desembargo do Paço
Notação: códice 250, vol. 2
Datas-limite: 1814-1816
Título de fundo ou coleção: Negócios de Portugal
Código de fundo ou coleção: 59
Argumento de pesquisa: população, órfãos
Data do documento: 24 de outubro de 1814
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 97, 97v e 98

 

Sobre a consulta do Senado da Câmara[1], a respeito das providências que se devem dar aos órfãos desamparados[2], e na qual pareceu ao Senado que tendo só [se] a tratar daqueles órfãos, cujos pais se ignoram, ou não tem de tratar da sua criação, visto que a providência a respeito dos outros está escrita na lei do [8º, 11º do Título 88 do Livro 1º] da Ordenação[3]. Tratando pois daqueles, a sua educação deve começar pelo ensino dos ofícios mecânicos[4], e artes liberais[5], mas para isto, além de rendimentos necessários se pedem estabelecimentos próprios. Estabelecimentos existem não só no Castelo e edifícios feitos para estes destinos que devem ter uso, como também no vasto edifício da Cordoaria[6], além dos pequenos da rua da Rosa, e sua vizinhança como apontam os juízes dos Órfãos[7], e ora estão sem uso, sendo estes últimos ao que parecem mais próprios para o depósito das órfãs.
Que ao Senado pertenceria cuidar na manutenção destes estabelecimentos piedosos e paternais, se estivesse de posse dos avultados rendimentos, que há anos foram desviados de sua administração, como fazem ver os procuradores da cidade, sendo certo que ainda assim mesmo, conforme a experiência mostrasse, se deveria lançar mão de fintas[8] em Lisboa e seu termo para este fim.
Que naqueles edifícios se devem recolher as órfãs destinadas para criadas de servir[9], enquanto não são assoldadadas debaixo das vistas dos seus [juízes] respectivos; empregando-se umas e outras em trabalhos de costura, próprios do seu sexo, e de que precisam os exércitos.
Conhece pois o Senado que aperfeiçoados os órfãos em ofícios e artes liberais, de modo que pudessem reger-se livremente, se deveria tratar no matrimônio de alguns deles como as órfãs a quem se tivesse dado um dote[10] para estabelecerem sua casa, que e havendo assim de se completar um tal estabelecimento os trabalhos dos mesmos órfãos concorreriam para grande parte da sua sustentação; visto que a fazenda[11] do Senado não pode sugerir esta despesa, sem se lhe restituírem os rendimentos que foram desviados da sua administração; ou aliás da finta lembrada na Ordenação do Reino, porém que Sua Alteza Real[12] mandaria o que fosse mais no seu real [agrado].
E dando-se vista ao procurador da Coroa da sobredita consulta e mais papéis a ela juntos, respondeu que os meios que existiam para socorrer os órfãos desamparados eram os que estabeleciam o antigo atual Regimento dos Juízes dos Órfãos[13] que aos desamparados destinava casas particulares onde eles e principalmente as órfãs se acomodassem por soldada, casas de mestres onde aprendessem ofícios, e de lavradores onde trabalhassem, e se exercitassem no serviço da lavoura[14], emprego e ocupação, que era o melhor colégio, e a mais conveniente instituição para granjearem sua vida e serem úteis ao Estado; que entre os meios que havia de socorrer os órfãos desamparados, se podia também contemplar a providência da [Ordem] L. 4º título 102 e ttº 103, para guarda dos órfãos menores manda dar a todos tutor, ou curador sem exceção de ricos ou pobres, e observando-se esta lei, podia o tutor pela entrega que deveria tomar dos órfãos dar-lhe abrigo, e recolhimento em sua casa, como parecia fora antigo costume, enquanto eles ou por falta de idade, ou por não haver quem as quisesse, se não podiam assoldadar, ou meter a ofícios, e podia compensar-se ao tutor a despesa do sustento pelo modo, que o §12 do Regimento mandava compensar às pessoas que criavam órfãos pequenos que sem levarem preço algum por sua criação. Que desta maneira seria muito mais diminuto o número de órfãos destituídos de habitação, sustento e ensino, e só se poderiam contar nesta classe aquelas órfãs, que enquanto se não punham a servir não podiam ter morada em casa de seus tutores e curadores, e aqueles órfãos, que também a não pudessem, ou não devessem ter por algum caso extraordinário.
Que para socorrer os órfãos destituídos de habitação, sustento e ensino, não havia cofre público, como informavam, os papéis juntos, num fundo comum a esse fim geralmente destinado, ainda que existissem alguns bens particulares deixados ou instituídos limitadamente para certo número de órfãos, e outras semelhantes pessoas miseráveis, como nos papéis juntos se referiam existir os do Colégio de Jesus, chamado dos meninos órfãos[15] no sítio da Mouraria[16]; os da Ermida, e Hospital de Nossa Senhora da Vitória, hoje na rua Áurea, e os das meninas órfãs na rua da Rosa das Partilhas. Que nem para socorro destes órfãos desamparados se podia agora lançar mão das rendas do Conselho, ou da finta, e derrama do povo: lembradas na Ordenação, por serem insuficientes as rendas atuais da Câmara, e imprópria dos tempos a finta do povo.
Que também constava dos papéis juntos não haver atualmente lugar público onde se recolhessem as órfãs enquanto se não punham a servir, porque se extinguira ou suspendera a que havia na Casa Pia do Castelo,[17] e parecia que o melhor modo de prover este negócio nesta capital seria instaurar a antiga Casa Pia do Castelo, que a experiência mostrara ser útil, e quando as rendas que antigamente tinha lhe não fossem agora aplicáveis, poderiam aplicar-se as casa, e rendas do mencionado Colégio de Jesus, ou dos Meninos Órfãos da Mourada, as da Ermida, e Hospital de Nossa Senhora da Vitória, hoje na rua Áurea, passando com o encargo de recolher quatro mulheres pobres, e entrevadas, segundo a sua instituição, e a das meninas órfãs, na rua da Rosa das Partilhas, incorporando-se estas casas, e rendas nos estabelecimentos da Casa Pia do Castelo, para serem administradas pela autoridade civil, e política, que tivesse a inspeção da dita Casa Pia, e concedendo-se -lhe mais o subsídio anual de uma loteria.[18]
Parece a Mesa o mesmo que ao procurador da Coroa, por serem as providências que aponta conforme as sábias leis deste Reino, e as mais próprias e adequadas ao objeto de que se trata nas circunstâncias atuais. Lisboa[19] 21 de novembro de 1813.
Sua Alteza Real = No alvará da data desta, dei as providências necessárias sobre esta matéria. Palácio do Rio de Janeiro 24 de outubro de 1814.

 

[1] Peças fundamentais da administração colonial, as câmaras municipais representam o poder local das vilas. Foram criadas em função da necessidade de a Coroa portuguesa controlar e organizar as cidades e vilas que se desenvolviam no Brasil. Por intermédio das câmaras municipais, as cidades se constituíam como cenário e veículo de interlocução com a metrópole nos espaços das relações políticas. Do ponto de vista da administração municipal e da gestão política, foram, durante muitos anos, a única instituição responsável pelo tratamento das questões locais. Desempenhavam desde funções executivas até policiais, em que se destacam resolução de problemas locais de ordem econômica, política e administrativa; gerenciamento dos gastos e rendas da administração pública; promoção de ações judiciais; construção de obras públicas necessárias ao desenvolvimento municipal a exemplo de pontes, ruas, estradas, prédios públicos, etc; criação de regras para o funcionamento do comércio local; conservação dos bens públicos e limpeza urbana. As câmaras municipais eram formadas por três ou quatro vereadores (homens bons), um procurador, dois fiscais (almotacéis), um tesoureiro e um escrivão, sendo presidida por um juiz de fora, ou ordinário empossado pela Coroa. Somente aos homens bons, pessoas influentes, em sua grande maioria proprietários de terras, integrantes da elite colonial, era creditado o direito de se elegerem e votarem para os cargos disponíveis nas câmaras municipais.

[2] Os órfãos desamparados constituíam uma parcela sensível da população do Império português, que preocupava Estado e Coroa, motivando uma série de ações para conter e administrar o problema da infância desvalida. Enquanto os herdeiros de “boas famílias”, com mais ou menos posses, podiam contar com o cofre dos órfãos, rendimentos, tutores e curadores, os órfãos pobres viviam à custa do assistencialismo e da caridade do Estado, da Igreja e de particulares. Quando as Casas de Misericórdia e outras instituições católicas começam a surgir, logo iniciam a prática de recolher os órfãos desamparados e cuidar deles até certa idade ou até que conseguissem uma família que os aceitasse. O princípio da caridade era o motor das ações institucionais e das doações individuais, sendo apropriado pelos homens bons para reafirmar seu poder e influência, de acordo com a moral cristã. A Igreja se ocupava de recolher os desamparados – o termo abandonado passou a ser usado no século XX para se referir à criança sem família deixada à própria sorte – e dar-lhes o primeiro sacramento, o batismo, para que não morressem pagãos. As casas de assistência e caridade encaminhavam, por sua vez, os órfãos às “criadeiras”, amas de leite e parturientes que recebiam um pagamento por amamentar e cuidar dos órfãos até a idade de 7 anos. Essa prática, muitas vezes, apresentava problemas graves: mulheres que recebiam as crianças, mas não tinham condições de amamentá-las; outras que privilegiavam o tratamento dos filhos legítimos, deixando os órfãos à míngua e, ainda, havia as que os tornavam criados desde muito cedo, tratando-os com violência e indiferença. Eram poucas as criadeiras que permaneciam com as crianças depois dos 7 anos, prazo estabelecido pelas instituições religiosas e pelo Estado para que ficassem sob seus cuidados financeiros. Depois desta data, eram deixadas às vezes à própria sorte, contando com a caridade alheia, com uma família que os abrigasse, ainda que, praticamente, como escravos ou com a experiência das ruas, dos que viviam à margem da ordem. As meninas eram mais protegidas pela Igreja para que não se desvirtuassem. Muitas eram encaminhadas para o serviço religioso. Esse “desamparo”, que teve um salto significativo entre fins do século XVIII e início do XIX, passou a preocupar a Coroa e a administração do reino, metrópole e colônias, visto que gerava uma população ociosa infantil, que poderia evoluir e tornar-se perigosa, além de criar adultos improdutivos no futuro. Com a finalidade de controlar e administrar as crianças e os jovens desvalidos e desamparados, o Estado passou o cuidado com os órfãos para as câmaras municipais, que deveriam criar escolas para meninos e meninas pobres, além das que já havia dirigidas pela Igreja Católica e, posteriormente, estabelecer postos de trabalho para que aquela população se tornasse útil ao Estado. Essa mudança não foi muito significativa a princípio, já que os religiosos continuavam a acolher órfãos desamparados e expostos e a maior parte das câmaras pouco fazia pelas crianças, alegando falta de recursos para o estabelecimento de novas escolas e abrigos, mal conseguindo manter os já existentes. Muitos órfãos desamparados continuavam contando com a caridade, outros se tornavam vadios, e havia, ainda, crianças e jovens que eram mandados pelas câmaras para serem criados em alguma família, que era obrigada a aceitá-los, constituindo uma prática chamada adoção compulsória. Essa prática acontecia em Portugal: as câmaras alegavam não ter recursos para construir casas para os órfãos, mas poderiam determinar bons vassalos do reino para serem compulsoriamente tutores de órfãos, obrigados a recebê-los e custeá-los até quando fosse determinado pela vereança.

[3] Trata-se de um conjunto de leis que refletiam o esforço do aparelho do Estado em registrar oficialmente as normas jurídicas vigentes nos diversos reinados, pois a dispersão das leis vigentes e aplicáveis trazia uma inevitável incerteza quanto à sua aplicação e, portanto, prejuízos à vida administrativa, política, econômica e jurídica de Portugal e seus domínios ultramarinos. As ordenações afonsinas, promulgadas por d. Afonso V (1432-1481), constituíram a primeira destas compilações, sendo substituídas pelas ordenações manuelinas (1521) e pelas filipinas (1603), compiladas sob o governo de Felipe I à época da União Ibérica, e vigoraram até 1868 em Portugal.

[4] O termo designa atividades relacionadas com trabalhos manuais. No Brasil colonial, tais ofícios eram considerados inferiores, dada a tradição cultural de valorização do ócio enquanto representação de nobreza, associando-os à escravidão. Com frequência esses ofícios se agruparam em irmandades como os ferralheiros, ferreiros, serralheiros e outros que se reuniram na Irmandade de São Jorge. Era tida como obrigatória tal filiação e, em alguns casos, as irmandades abrigaram a população negra e escravizada, a despeito das interdições decorrentes dos critérios da “limpeza de sangue”. A irmandade vedava em seu primeiro compromisso o acesso de “Judeu, Mouro, negro ou mulato ou de outra infecta nação”, observa Beatriz Catão. Mas, diante da intervenção da Coroa, iria admitir a presença tanto de irmãos proprietários de escravos quanto de forros e cativos, reunidos a partir do ofício exercido (Irmandades, ofícios e cidadania no Rio de Janeiro do século XVIII. IX Congresso Internacional da Brazilian Studies Association (BRASA), 2008. Disponível em http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Beatriz-Catao-Cruz-Santos.pdf). Já os ofícios nobres relacionavam-se às habilidades intelectuais, tais como as letras e as artes. No entanto, ao longo do século XIX, ofícios mecânicos prender-se-iam à ideia de “artes úteis”, permitindo uma aplicação concreta em campos como a guerra, a engenharia, ciências naturais, tipografia, ou seja, na produção de bens ou serviços públicos. Por serem considerados impulsionadores de atividades econômicas, os ofícios mecânicos ganhariam importância. Um exemplo foi a criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios por d. João VI em 1816, com o objetivo de formar “homens destinados não só aos empregos públicos da administração do estado, mas também ao progresso da agricultura, mineralogia, indústria e comércio de que resulta a subsistência, comodidade e civilização dos povos”. O decreto de criação da escola afirmava fazer-se “necessário aos habitantes o estudo das belas artes com aplicação e preferência aos ofícios mecânicos cuja prática, perfeição e utilidade dependem dos conhecimentos teóricos daquelas artes e difusivas luzes das ciências naturais, físicas e exatas”. As artes mecânicas incluíam ourivesaria, marcenaria e até concepção de inventos e máquinas destinados a melhorar algum aspecto da produção de bens.

[5] No início do século XIX, as chamadas “artes mecânicas” eram as mais difundidas entre a população colonial e popularmente conhecidas por “artes úteis”. Compreendiam atividades ligadas diretamente aos ofícios mecânicos tais como marcenaria, ourivesaria, construção de maquinário para produção de açúcar, entre outros. Após a chegada da família real, em 1808, deu-se início a uma política de valorização e propagação das chamadas “belas-artes” ou “artes liberais”. O novo Estado português nos trópicos passava a incentivar atividades artísticas mais variadas tais como pintura, desenho, escultura, teatro, poesia, música, entre tantas outras. Aconselhado por seu ministro Antônio de Araújo Azevedo, o conde da Barca, um dos homens mais cultos de sua época, d. João contratou um grupo de artistas franceses com o objetivo de organizar uma Escola de Artes e Ofícios em terras brasileiras. A Missão Artística, como ficou conhecida, era liderada por Joachim Lebreton, antigo secretário das Belas-Artes do Instituto da França. A Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios foi criada através de um decreto de agosto de 1816. As medidas da Coroa revelavam, no entanto, um conflito entre os artistas estrangeiros, que desejavam a implementação de uma política estatal de propagação das belas-artes, e os partidários da ideia de que estas “artes de luxo” deveriam se submeter às “artes úteis e necessárias”, necessárias no caso para o desenvolvimento de atividades econômicas ou ao menos de caráter mais prático.

[6] A construção da Real Fábrica da Cordoaria da Junqueira, ou simplesmente Cordoaria Nacional, foi estabelecida em 1771 pelo marquês de Pombal e concluída em 1779. Erguida na freguesia de Belém, em Portugal, de onde partiam as naus portuguesas em direção aos seus domínios ultramarinos, tinha a função de produzir cordas, cabos, velas, bandeiras e alfaiataria destinada à empresa da navegação. No prédio estreito e comprido paralelo ao rio Tejo, atribuído ao arquiteto Reinaldo Manuel dos Santos, funcionavam diversas oficinas que forneciam material aos armadores portugueses, embora a indústria nacional de cordames não fosse suficiente para prover todas as necessidades da frota do Reino, que continuava a importar grandes volumes da indústria de cordoaria holandesa. No final do século XVIII e início do XIX, empreendeu-se um esforço de aumento e racionalização da produção do cânhamo (matéria-prima principal das oficinas) e de pesquisa e descoberta de novos materiais, sobretudo no Brasil, que pudessem ser usados na cordoaria e que dessem bons resultados. Esse incentivo, promovido pela geração ilustrada ligada a Academia Real das Ciências de Lisboa, resultou em algumas descobertas, mas a indústria cordoeira no Brasil não chegou a florescer ao ponto de suprir as importações da metrópole. O prédio da Cordoaria Nacional sofreu alguns graves incêndios e reconstruções, e foi usado para diversos propósitos. Tornou-se Monumento Nacional em 1996.

[7] Autoridade judiciária, tinha a função de zelar pelos órfãos de sua jurisdição e seus bens, inclusive registrando em livro próprio quantos órfãos havia e de que bens dispunham, além de verificar se os mesmos estavam sendo bem geridos. Aos juízes dos órfãos competia uma quantidade enorme de atribuições e atividades, até mais do que aos juízes ordinários e de fora. Entre as competências constam  nomear e confirmar tutores e curadores, prover os órfãos de bens para garantir seu sustento, fazer inventários, avaliar os bens e realizar as partilhas, fazer vender imóveis e arrendar bens de raiz, cuidar para que os rendimentos seguissem para a educação do órfão, conceder cartas de emancipação e licenças de casamento. Eram responsáveis por assegurar com que todos os órfãos tivessem tutor até um mês depois do falecimento do pai ou da mãe, fossem familiares ou não, e por fiscalizar e verificar a idoneidade do tutor ou curador. Se sobre os tutores fosse constatada alguma irregularidade ou má conduta, o juiz deveria destituí-los e obrigá-los a restituir os bens dos órfãos, além de nomear um novo tutor. Era obrigação dos juízes fiscalizar e vigiar os valores que entravam e saíam do cofre dos órfãos e verificar o patrimônio dos tutores, além de fiscalizar o trabalho realizado pelo juiz anterior e denunciá-lo em caso de irregularidades, e arrecadar impostos e taxas para o Juízo. Possuía jurisdição sobre todas as ações cíveis que envolvessem os órfãos, fossem como autores ou réus, até a sua emancipação. Estruturalmente, o juízo dos órfãos era constituído pelo respectivo juiz, pelos escrivães, pelo tutor geral dos órfãos, pelo contador e pelos avaliadores e partidores. Ainda cabia a eles fiscalizar seus oficiais subordinados, escrivão, ajudante de escrivão, oficiais de registro, tesoureiro, contador, avaliador, partidor e porteiro do auditório – considerando que uma mesma pessoa poderia acumular mais de uma função – e prestar contas de tudo o que acontecia sob sua jurisdição ao Provedor, responsável, por sua vez, por fiscalizar as atividades do juiz dos órfãos.

[8] Modalidade de contribuição de melhoria urbana aplicável a obras públicas de bem comum. Constava de um tributo, geralmente cobrado uma vez ao ano, por vezes da população de toda a cidade, ou apenas de algumas regiões para as quais as obras eram específicas. As fintas, segundo as Ordenações Filipinas, eram encargos a serem cobrados apenas pela Coroa para o custeio de obras específicas, como pontes, caminhos, fontes, calçadas, chafarizes e outras obras consideradas “benfeitorias” para a população. Os custos dessas obras deveriam vir da arrecadação do Senado da Câmara (instância municipal), mas como quase sempre os vereadores alegavam que não havia recursos suficientes nos cofres públicos, admitia-se a aprovação, junto ao rei, para lançar uma nova finta que arrecadasse a quantia necessária para as obras. Acontecia, frequentemente, das fintas continuarem a ser cobradas por períodos muito mais longos do que a duração das obras.

[9] A infância desvalida envolvia uma parcela significativa da população infantil do Império português, existindo na metrópole e nas colônias, fruto das mais variadas razões: morte dos pais, doenças graves e invalidantes da criança, que dificultavam e encareciam sua criação, pobreza, abandono dos pais por motivos financeiros, morais ou de comportamento. A maior parte das crianças pobres abandonadas de Portugal e suas colônias acabava indo para as Santas Casas de Misericórdia, instituições filantrópicas ligadas à Igreja e ao Estado, que se encarregavam de receber e dar assistência aos menores até os sete anos de idade, quando perderiam os benefícios e teriam que encontrar uma família que os adotasse, ou conseguir algum trabalho que provesse seu sustento, senão iriam para as ruas. Enquanto a Igreja teve maior influência e ingerência nos negócios do reino, a maior parte dos órfãos era encaminhada para a vida eclesiástica, após receber instrução em colégios e seminários ou conventos. Com o processo de secularização do Estado, a Coroa passou a assumir o cuidado dos órfãos, que deveria ser administrado pelas câmaras municipais, o que não acontecia. A maior parte das crianças continuava sob a tutela da Santa Casa, dos Recolhimentos, dos colégios religiosos e Casas Pias. A intenção do Estado era proporcionar uma vida laica para a grande população órfã pobre, incentivando o casamento, a aprendizagem de ofícios e o trabalho, substituindo o papel exercido pela Igreja durante séculos. A tutela foi o primeiro e principal mecanismo que as famílias mais pobres, principalmente das colônias, que não tinham condições de ter escravos, lançavam mão para conseguir, em troca de moradia e alimentação, quase sempre insuficientes, mão de obra gratuita para ajudar nos afazeres da casa, domésticos, e também nas atividades que garantiam o sustento, desde o trabalho no campo até nas ruas das cidades. A maioria dos meninos era encaminhada para serem aprendizes de ofícios ou marinheiros, enquanto as meninas, para se tornarem criadas domésticas ou “criadas de servir”. Estas eram incentivadas a conseguir casamento e na impossibilidade desses acontecerem, as instituições de cuidado providenciavam a colocação de moças em “casas de família” para servirem como criadas. Durante o período em que estivessem recolhidas, receberiam toda a instrução e formação para serem boas donas de casa, mães e realizarem os trabalhos domésticos, próprios, então, para as mulheres. Havia órfãos que eram dados a famílias que se ofereciam para criá-los, sem registros formais, e também os órfãos que as Santas Casas conseguiam que fossem adotados depois da idade de sete anos, os “filhos de criação”. É desse processo de “pegar para criar” que emerge a referência aos mesmos como “criados” da casa. A política de controle e de disciplinarização do trabalho dos menores órfãos e ociosos intensificou-se ao longo do século XIX, tanto em Portugal, quanto no Brasil, visando à incorporação das crianças e jovens à lógica produtiva dos estados como mão de obra barata no início do processo de industrialização. Somente depois da abolição do regime escravista e da implantação da República, já no século XX, a noção de infância e a especificidade da criança como indivíduo começam a se tornar objeto de estudos, principalmente de pedagogos e psicólogos, e o trabalho infantil passa a ser condenado e combatido, muito embora persista até hoje no Brasil, quase sempre nas mesmas condições dos antigos “filhos de criação” da época colonial.

[10] Prática adotada na colônia desde o início da ocupação e povoamento do território. De acordo com o direito português vigente nos primórdios da colonização, expresso nas Ordenações Manuelinas e Filipinas, o dote tinha dois significados principais para a sociedade, dependendo do ponto de vista dos envolvidos na transação: para os doadores, representava os bens que os pais davam às filhas e às mulheres da família, quando se casavam ou eram recolhidas a um convento, para servir como contribuição para sua manutenção no futuro, considerado uma antecipação da herança a que tinha direito; por outro lado, para os recebedores, eram os bens, no caso do casamento, que as mulheres traziam e podiam ou não, unir aos dos maridos nos contratos de matrimônio. Um tipo de contrato, chamado de “carta a metade”, a comunhão de bens, previa que os bens passavam a ser do casal e deveriam ser divididos entre os herdeiros igualmente, em caso de falecimento de um dos cônjuges. No outro regime dotal, chamado então de “contrato de dote e arras”, semelhante ao regime de separação de bens, a mulher, em caso de viuvez ou separação, mantinha os bens do dote que recebeu para se casar e, quando houvesse, das “arras”, uma espécie de garantia em forma de bens ou dinheiro de que os valores seriam retornados. Esse sistema não era muito frequente no Brasil, mas protegia o dote, este inalienável, que ficava sob a administração do marido, que era obrigado a mantê-lo sem prejuízo. Na sociedade colonial, o dote era considerado um dever, uma obrigação moral dos pais com as filhas, embora não fosse uma obrigação legal, como também era seu dever prover e sustentar os filhos homens. Portanto, os valores dos dotes variavam muito de acordo com os recursos dos pais e os costumes de cada família e região, e podiam ser compostos de valores em moeda, mas eram mais frequentes os bens imóveis como terras e casas, joias e, até mesmo, escravos. Eram certamente determinantes para que as mulheres conseguissem se casar, e influenciavam na escolha do noivo e da família deste. Por vezes, a candidata a noiva não tinha como dote apenas seus bens, ou mesmo não os tinha; a condição social que ela trazia para o casamento poderia ser considerada um dote, já que distinção e nobreza faziam muita diferença em uma sociedade hierarquizada como a colonial, tanto que, por vezes, casamentos desvantajosos em termos de dote eram acertados em virtude da família da noiva e de seu nascimento nobre. A prática destes “casamentos desiguais” não era bem-vista, mas tolerada pela sociedade, já que aconteciam, sobretudo, em locais onde a nobreza estivesse empobrecida. O costume de dotar as filhas avançou até meados do século XIX, embora mais enfraquecido, e foi perdendo lugar e importância, principalmente nas cidades e províncias maiores, à medida que crescia a ideia do casamento afetivo, da individualidade e da diminuição da rigidez da sociedade patriarcal.

[11] Instituição fiscal criada em Portugal, no reinado de d. José I, pelo alvará de 22 de dezembro de 1761, para substituir a Casa dos Contos. Foi o órgão responsável pela administração das finanças e cobrança dos tributos em Portugal e nos domínios ultramarinos. Sua fundação simbolizou o processo de centralização, ocorrido em Portugal sob a égide do marquês de Pombal, que presidiu a instituição como inspetor-geral desde a sua origem até 1777, com o início do reinado mariano. Desde o início, o Erário concentrou toda a arrecadação, anteriormente pulverizada em outras instâncias, padronizando os procedimentos relativos à atividade e serviu, em última instância, para diminuir os poderes do antigo Conselho Ultramarino. Este processo de centralização administrativa integrava a política modernizadora do ministro, cujo objetivo central era a recuperação da economia portuguesa e a reafirmação do Estado como entidade política autônoma, inclusive em relação à Igreja. No âmbito fiscal, a racionalização dos procedimentos incluiu também novos métodos de contabilidade, permitindo um controle mais rápido e eficaz das despesas e da receita. O órgão era dirigido por um presidente, que também atuava como inspetor-geral, e compunha-se de um tesoureiro mor, três tesoureiros-gerais, um escrivão e os contadores responsáveis por uma das quatro contadorias: a da Corte e da província da Estremadura; das demais províncias e Ilhas da Madeira; da África Ocidental, do Estado do Maranhão e o território sob jurisdição da Relação da Bahia e a última contadoria que compreendia a área do Rio de Janeiro, a África Oriental e Ásia. Por ordem de d. José I, em carta datada de 18 de março de 1767, o Erário Régio foi instalado no Rio de Janeiro com o envio de funcionários instruídos para implantar o novo método fiscal na administração e arrecadação da Real Fazenda. Ao longo da segunda metade do século XVIII, seriam instaladas também Juntas de Fazenda na colônia, subordinadas ao Erário e responsáveis pela arrecadação nas capitanias. A invasão napoleônica desarticulou a sede do Erário Régio em Lisboa. Portanto, com a transferência da Corte para o Brasil, o príncipe regente, pelo alvará de 28 de junho de 1808, deu regulamento próprio ao Erário Régio no Brasil, contemplando as peculiaridades de sua nova sede. Em 1820, as duas contadorias com funções ultramarinas foram fundidas numa só: a Contadoria Geral do Rio de Janeiro e da Bahia. A nova sede do Tesouro Real funcionou no Rio de Janeiro até o retorno de d. João VI para Portugal, em 1821.

[12] Segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[13] Os regimentos eram conjuntos de normas publicadas em forma de leis que regiam o funcionamento de uma instituição e as funções e atribuições de cada oficial que fazia parte de certa jurisdição. Eram periodicamente atualizados, de acordo com as mudanças havidas nas obrigações de cada cargo ou lugar. Os regimentos dos juízes dos órfãos começaram a aparecer com esta denominação a partir das primeiras ordenações, de d. Afonso V em 1448, que deram início às grandes compilações das leis de Portugal. No entanto, o lugar de juiz de órfãos existia pelo menos desde o reinado de d. Afonso II, no século XII. As leis e disposições sobre os órfãos e sobre os oficiais encarregados de seus negócios e cuidados foram atualizadas no século XIV, de acordo com o Livro das Leis e Posturas, e aumentadas e melhoradas ao longo das compilações seguintes, como as Ordenações de d. Duarte, de inícios do século XV, as Leis Extravagantes, de 1569 – onde podemos identificar um primeiro regimento mais completo sobre o Juízo dos Órfãos –, até a publicação do Código Filipino em 1603, que organizou a matéria e ficou em vigor até o século XIX, com algumas mudanças mais significativas em 1757-1759 e em 1815.

[14] A agricultura surge no início da colonização da América portuguesa para melhor aproveitar as terras descobertas, como uma solução para a necessidade de ocupar, povoar e fazer produzir a colônia, quando se acreditava que as novas terras não eram promissoras em metais preciosos. Inicialmente tentou-se ajustá-las para a produção de gêneros europeus importados por Portugal; com o passar do tempo percebeu-se que alguns produtos não se adaptariam ao terreno e ao o clima, adotando-se o uso de produtos tropicais já cultivados pelos índios, ou outros produtos com grande valor comercial. A cana-de-açúcar foi o primeiro e o mais duradouro destes gêneros produzidos para a exportação. A agricultura colonial era apoiada no trabalho escravo, utilizava grandes áreas territoriais e tendia a se focar na exploração em massa de um gênero: o tripé escravidão, latifúndio e monocultura. No entanto, não se pode limitar o entendimento da lavoura na colônia a estas bases. Era comum a existência de grandes fazendas com lavouras não voltadas para o mercado externo. Como as técnicas de produção eram muito rudimentares (durante todo o período colonial e grande parte do Império), verificando-se a ausência do uso do arado, da adubação e do descanso das terras, grandes extensões de terreno eram necessárias para o plantio, além das necessidades habituais decorrentes do aumento da produção e do comércio. Quanto ao caráter de monocultura, embora se reconheça que as grandes lavouras produziam principalmente um produto para a exportação, sabe-se também que quase todas elas mantinham em seus terrenos, áreas consideráveis dedicadas a gêneros para consumo interno ou para abastecimento. Havia, em paralelo a esta grande plantação, pequenas propriedades produtoras de gêneros para o mercado interno que exerciam um papel complementar, suprindo a colônia. Sustentadas no trabalho familiar e na produção de mais de um gênero, essas lavouras foram responsáveis pela ocupação inicial do interior, o chamado sertão , para onde partiam os lavradores e suas famílias, em busca de solo mais fértil, haja vista que dentro ou nas franjas das grandes propriedades, somente ocupavam terras devolutas ou pobres. Por todo o período colonial, a grande lavoura mais lucrativa foi de cana-de-açúcar, seguida pelo tabaco, valoroso como moeda de troca por escravos na África, e pelo algodão, que ganhou importância depois do século XVIII, quando cresceu a demanda da indústria têxtil inglesa. Durante o período "áureo" da mineração, a agricultura, de forma geral, passou por reformulações: muitos escravos e braços utilizados na terra foram desviados para a extração de minérios; a receita gerada pela lavoura foi suplantada pelos vultosos e rápidos lucros obtidos com o ouro e os diamantes, colocando-a, de certa forma, em segundo lugar nas atenções da Coroa; e a lavoura de abastecimento cresceu em importância. Diversas famílias de agricultores pobres que se dedicavam à pequena lavoura de abastecimento lançaram-se à aventura do ouro, em busca de enriquecimento fácil, e devido à consequente diminuição na produção de alimentos, a fome e a carestia tomaram conta não somente do distrito aurífero, mas de boa parte da colônia. Até mesmo a escravos era possível desenvolver pequenas roças para subsistência e abastecimento, o que parte da historiografia brasileira sobre a colônia considera como a origem da "brecha camponesa", temática bastante debatida a partir dos anos 1960. A partir de meados do século XVIII, no âmbito da política fomentista da administração pombalina, começou-se a investir mais em estudos científicos para a melhoria das técnicas agrícolas, visando o aumento da produtividade e da produção. A agricultura passou a ser vista como uma arte, um exemplo da capacidade do homem interagir com seu ambiente e transformá-lo em seu benefício. E segundo este mesmo pensamento inspirado na fisiocracia, de grande influência no meio ilustrado luso- brasileiro, passou também a ser encarada como a grande fonte de riqueza do Estado, para onde deveriam se voltar todos os esforços, científicos e práticos.

[15] Instituições fundadas e administradas pela Companhia de Jesus, que começaram a ser criados no século XVI, tanto em Portugal quanto no Brasil, para fornecer ensino de caráter humanista e religioso, funcionando como escola comum e seminário, e no caso brasileiro, ainda oferecendo catequese e conversão dos índios à fé católica, além do ensino da língua e dos costumes dos brancos. Aceitavam tanto meninos de boas famílias, filhos da elite colonial, brancos ou mestiços, que buscavam a instrução que possibilitaria seu ingresso nas universidades europeias, quanto meninos órfãos e pobres desamparados, que recebiam moradia, alimentação, educação e eram frequentemente encaminhados para o serviço religioso. A instituição escolar jesuíta reinou quase soberana durante o período colonial, e apesar de outras ordens também administrarem colégios e seminários, o ensino inaciano prevaleceu e disseminou-se pelo Brasil. Em 1759, com a expulsão da Companhia de Jesus de toda a extensão do Império português, as antigas escolas e instalações de seminários transferiram-se para o patrimônio do Estado, que passou a se responsabilizar pela tarefa de educar e prestar auxílio aos menores órfãos. A partir desse momento, a orientação da Coroa era de que as escolas ministrassem ensino laico, ainda que cristão, mas de caráter mais pragmático e voltado para a formação profissional e do súdito “útil” ao Império, principalmente no caso dos rapazes. As escolas para meninas órfãs eram mais rígidas na proteção e controle das moças, mantendo o princípio moral religioso de preservar sua “honra” e prepará-las para o casamento, sempre que possível, e para o desempenho das tarefas domésticas. Essas habilidades poderiam assegurar às jovens que não se casassem trabalho como criadas nos lares em Portugal, possibilidade praticamente inexistente para as órfãs do Brasil, já que quem desempenhava as tarefas domésticas na maior parte das casas dos mais abastados eram as escravas. Em geral, as três ocupações mais frequentes para os meninos órfãos e pobres eram os ofícios mecânicos, os tratos marítimos e o sacerdócio. Embora desencorajado pelo Estado, que preferia trabalhadores em vez de padres, essa terceira opção continuava a ser uma alternativa viável, considerando-se que muitas escolas ainda eram regidas por religiosos de diversas ordens. As escolas de ofícios mecânicos desenvolveram-se pouco na metrópole, restando à maioria dos órfãos a Marinha ou os serviços nas guardas, onde teriam uma vida de privações, muito trabalho e maus tratos.

[16] Bairro no arrabalde do centro da cidade de Lisboa, no entorno da colina em cujo topo se encontra o Castelo de São Jorge. Deve seu nome aos muçulmanos que foram para lá empurrados pelas tropas cristãs de d. Afonso Henriques, que reconquistou o território lisboeta da dominação moura em 1170 e designou a montanha e seu entorno como refúgio de habitação da população conquistada. A presença desses grupos levou ao desenvolvimento de um tipo de arte e de arquitetura únicas, a arte mudéjar, uma mistura de estilos árabes e portugueses, que evoluíram no que se costuma chamar de estilo manuelino. Foi durante muito tempo um bairro decadente, habitado por população “indesejada”, formada, a princípio, por diferenças religiosas entre cristãos e muçulmanos, mas depois substituída por populares e imigrantes, e continuou durante muito tempo associado ao lugar onde vivem os párias e enjeitados da sociedade. A ausência de políticas públicas e o abandono do Estado levaram à ruína diversas construções, mas também acabaram por favorecer a existência, ainda hoje, dos prédios históricos antigos, atualmente em processo de revitalização.

[17] “Para asilo da pobreza, para desterro da mendicidade, cancro que há longos anos rói e devora os estados da Europa, cria no Castelo de S. Jorge uma Casa Pia, onde também a mocidade é instruída nos elementos das ciências e das belas artes, e donde saíram depois muitos moços de talentos, que foram brilhar em Coimbra”. Assim definia José Bonifácio a criação da Casa Pia de Lisboa, instalada no Castelo de São Jorge em 1780, por iniciativa de Diogo Inácio Pina Manique, intendente geral de Polícia do Reino, desembargador do Paço, administrador da Fazenda de Lisboa e feitor-mor de todas as alfândegas portuguesas (entre outros cargos que acumulava). Inicialmente, Pina Manique pretendia estabelecer uma casa para recolhimento de mendigos, mas logo passou a recolher também os órfãos que vagavam pela cidade. O que começou como um projeto particular de Manique se tornou oficial, quando d. Maria I tomou sob sua proteção o estabelecimento em 1782. Dentro do Castelo, várias “instituições” funcionavam paralelamente, todas como parte do mesmo projeto. Havia uma oficina na qual os mestres ensinavam a fabricar lonas, tecidos e fiações diversas; casas de correção (para ambos os sexos); casas para que os “corrigidos” aprendessem os deveres civis e religiosos; a casa de Santa Isabel para meninas órfãs; a casa de Santo Antônio, para órfãos menores, que aprenderiam as primeiras letras; o Colégio São José, para órfãos ainda dependentes; um colégio onde se ensinava alemão e escrituração mercantil; o Colégio de São Lucas, onde se tinham aulas de farmácia, de desenho, gramática latina, anatomia, línguas inglesa e francesa, e princípios de matemática (os melhores alunos formados neste colégio seguiriam para a Academia da Marinha, as Aulas de Comércio e Aulas Régias, de Filosofia e Grego); e, por fim, aulas de obstetrícia, para homens e mulheres separadamente. Houve mesmo ramificações desta Casa Pia em lugares como Coimbra, Edimburgo, na Dinamarca e em Roma, que ensinavam ciências naturais, medicina e obstetrícia, e belas artes. A Casa Pia foi extinta em 1807, após o início das invasões francesas em Portugal, quando o castelo foi tomado e os “alunos” convocados para lutar nas guerras. Foi retomada em 1814 no Mosteiro do Desterro, desta vez sob o controle do Senado da Câmara, por imperiosa necessidade, haja vista o grande número de órfãos e desamparados gerados pelas guerras napoleônicas.

[18] Usualmente conhecida como jogo de azar, por meio de bilhetes numerados ou frações destes com o fim de se obterem prêmios pecuniários que são indicados por sorteios. Sua criação em Portugal data do final do século XVII, quando já estava instituída em alguns países da Europa. As loterias foram criadas com o objetivo de arrecadar receita para operações financeiras, principalmente visando reformar a moeda e fazer circular o dinheiro existente no Reino. D. Pedro II, rei de Portugal de 1683 a 1706, em carta régia datada de 4 de maio de 1688, criou a primeira loteria portuguesa, chamada loteria real. Em 1805, o príncipe regente d. João VI decreta a mudança de definição de loteria real para loteria nacional. Ao estado cabia a prerrogativa de autorizar a realização de loterias, em geral concedida a instituições beneficentes e científicas. Um dos destinos dos recursos obtidos com tais loterias foi a Academia Real das Ciências de Lisboa, instituição científica criada em 1779. O 1º duque de Lafões, seu sócio-fundador, foi o responsável por ser destinada à academia, por diversas vezes, parte das receitas das loterias, principalmente após 1799, quando o príncipe d. João VI arbitrou à instituição 4.800.000 réis anualmente.

[19] Capital de Portugal, sua origem como núcleo populacional é bastante controversa. Sobre sua fundação, na época da dominação romana na Península Ibérica, sobrevive a narrativa mitológica feita por Ulisses, na Odisseia de Homero, que teria fundado, em frente ao estuário do Tejo, a cidade de Olissipo – como os fenícios designavam a cidade e o seu maravilhoso rio de auríferas areias. Durante séculos, Lisboa foi romana, muçulmana, cristã. Após a guerra de Reconquista e a formação do Estado português, inicia-se, no século XV, a expansão marítima lusitana e, a partir de então, Portugal cria núcleos urbanos em seu império, enquanto a maioria das cidades portuguesas era ainda muito acanhada. O maior núcleo era Lisboa, de onde partiram importantes expedições à época dos Descobrimentos, como a de Vasco da Gama em 1497. A partir desse período, Lisboa conheceu um grande crescimento econômico, transformando-se no centro dos negócios lusos. Como assinala Renata Araújo em texto publicado no site O Arquivo Nacional e a história luso-brasileira (http://historialuso.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3178&Itemid=330), existem dois momentos fundadores na história da cidade: o período manuelino e a reconstrução pombalina da cidade após o terremoto de 1755. No primeiro, a expansão iniciada nos quinhentos leva a uma nova fase do desenvolvimento urbano, beneficiando as cidades portuárias que participam do comércio, enquanto são elas mesmas influenciadas pelo contato com o Novo Mundo, pelas imagens, construções, materiais, que vinham de vários pontos do Império. A própria transformação de Portugal em potência naval e comercial provoca, em 1506, a mudança dos paços reais da Alcáçova de Lisboa por um palácio com traços renascentistas, de onde se podia ver o Tejo. O historiador português José Hermano Saraiva explica que o lugar escolhido como “lar da nova monarquia” havia sido o dos armazéns da Casa da Mina, reservados então ao algodão, malagueta e marfim que vinham da costa da Guiné. Em 1º de novembro de 1755, a cidade foi destruída por um grande terremoto, com a perda de dez mil edifícios, incêndios e morte de muitos habitantes entre as camadas mais populares. Caberia ao marquês de Pombal encetar a obra que reconstruiu parte da cidade, a partir do plano dos arquitetos portugueses Eugenio dos Santos e Manuel da Maia. O traçado obedecia aos preceitos racionalistas, com sua planta geométrica, retilínea e a uniformidade das construções. O Terreiro do Paço ganharia a denominação de Praça do Comércio, signo da nova capital do reino. A tarde de 27 de novembro de 1807 sinaliza um outro momento de inflexão na história da cidade, quando, sob a ameaça da invasão das tropas napoleônicas, se dá o embarque da família real rumo à sua colônia na América, partindo no dia 29 sob a proteção da esquadra britânica e deixando, segundo relatos, a população aturdida e desesperada, bagagens amontoadas à beira do Tejo, casas fechadas, como destacam os historiadores Lúcia Bastos e Guilherme Neves (Alegrias e infortúnios dos súditos luso-europeus e americanos: a transferência da corte portuguesa para o Brasil em 1807. Acervo, Rio de Janeiro, v.21, nº1, p.29-46, jan./jun. 2008. http://revista.arquivonacional.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/86/86). No dia 30 daquele mês, o general Junot tomaria Lisboa, só libertada no ano seguinte mediante intervenção inglesa.

 

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