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Império luso-brasileiro

Comentário

Publicado: Terça, 24 de Janeiro de 2017, 12h58 | Última atualização em Quinta, 09 de Agosto de 2018, 20h45
Títulos e mercês na corte joanina

Camila Borges da Silva
Professora Adjunta do Departamento de História
 Universidade do Estado do Rio de Janeiro 

Em 1808 a família real portuguesa aportou no Brasil acompanhada de um séquito de nobres e membros da sociedade portuguesa. Fugiam da invasão das tropas napoleônicas ao território português. A sede do Império Ultramarino é então transplantada para a América em meio a um contexto de profunda dependência econômica daquela que já se constituía a "parte mais rica do Império".[1]
Para governar, o centro do poder precisava do apoio tanto daqueles que vieram junto com ele, quanto dos grupos endinheirados que viviam na então colônia. As concessões de títulos de nobreza, ordens honoríficas e cargos eram utilizadas justamente para esse fim. Para os homens que habitavam a América chamava a atenção a criação de um grande número de cargos que vieram com o estabelecimento no Rio de Janeiro das principais instituições do Reino. A proximidade do príncipe regente, por seu turno, fez com que as elites coloniais vislumbrassem uma ampliação na possibilidade de nobilitação. Esses seriam recursos utilizados pela monarquia para a construção de uma coesão em torno do poder central, ao mesmo tempo em que angariava serviços e doações pecuniárias que sustentavam o Estado.

 A nobreza portuguesa era marcada por diferentes níveis que perfaziam uma hierarquia bastante complexa. Como aponta Nuno Monteiro, ela era encimada pelo grupo dos "grandes", composto por senhores de terras, comendadores e detentores dos principais cargos do Reino, enquanto em sua base encontravam-se licenciados e bacharéis, oficiais das tropas, negociantes de grosso trato, juízes e vereadores que atuavam nos cargos das câmaras.[2] Os cargos e os títulos eram distribuídos de acordo com essa hierarquia, de maneira que a chamada "primeira nobreza" monopolizava as melhores posições e titulações, inacessíveis para a base da sociedade. Essa divisão era reproduzida em território colonial de maneira que as elites, a despeito do poder econômico que pudessem exercer, alcançavam com muita dificuldade as principais mercês régias.[3] Mesmo a chegada da corte não alterou esse quadro, quando às principais famílias que transmigraram com o rei foram concedidos os melhores títulos e cargos, enquanto na base da pirâmide hierárquica aglutinava-se a maior parte dos colonos que sustentaram a estadia da corte e as transformações urbanas implementadas a partir de 1808.

A entrada no rol da nobreza dos colonos se dava através da categoria de nobreza civil ou política, que se diferenciava da nobreza de linhagem marcada pelo sangue. A primeira, ao contrário, se fazia nobreza pela remuneração do monarca aos serviços prestados, embora, como já mencionado, isso não implicasse no amplo acesso aos melhores cargos e títulos do Império português. Advém daí a importância das mercês régias, pois por meio delas se faziam as concessões de cargos e títulos. Embora nem todo cargo tivesse a capacidade de nobilitar uma pessoa, para a ocupação de cada um deles era exigido um rol de serviços que poderia ser mais ou menos extenso. A nobreza, contudo, era mais diretamente alcançada quando os títulos de nobreza os ou hábitos das ordens militares e civis eram concedidos.

As ordens militares existiram desde a Idade Média com a função de serem braços armados da cristandade, responsáveis pela conquista e defesa de territórios no Oriente e na Península Ibérica. Foram incorporadas à coroa portuguesa por meio de uma série de bulas emitidas pela Santa Sé, a quem essas ordens ficavam diretamente subordinadas.[4] As ordens de São Bento de Avis e de Santiago passaram por esse processo, enquanto a Ordem de Cristo foi criada em Portugal em substituição à Ordem do Templo, extinta oficialmente em 1319, pelo papa João XXII. Os cavaleiros dessas ordens deveriam levar uma vida regrada pelas leis cristãs e as cerimônias de entrada nelas ocorriam em igrejas.

As ordens tinham, portanto, um caráter cristão que se manteve por todo período moderno e alcançou o século XIX, embora os serviços prestados para adentrar as mesmas tenham se alterado a partir do momento em que elas foram incorporadas pelos reis portugueses. Mais do que cavaleiros ligados à expansão da cristandade, todo tipo de serviço passou progressivamente a ser utilizado para ser agraciado. Não apenas serviços militares no Reino e nas conquistas eram recompensados, mas também aqueles realizados por meio da ocupação de determinados cargos e mesmo doações em dinheiro à Coroa eram passíveis de ser premiadas com o hábito de uma das ordens. Com isso percebe-se que também esses hábitos se tornaram valiosos instrumentos para que a Coroa conseguisse obter serviço e fidelidade de seus vassalos, especialmente porque eram elementos nobilitantes muito desejados na sociedade. Contudo, da mesma maneira que o restante da nobreza em Portugal, também nas ordens havia uma hierarquia entre os graus que permitia à Coroa construir uma pequena nobreza mais ampliada na base, os cavaleiros, e estreitar a nobilitação dos graus mais distintivos no topo - comendador e grão-cruz.

Para além da dependência por parte da Coroa dos serviços e capital de seus vassalos na América, a transferência da corte trouxe outro problema. Como se viu, as ordens como elementos de recompensa estavam profundamente ligadas ao vínculo católico dos candidatos. Assim, pessoas de outras religiões não poderiam ser agraciadas com as mesmas honrarias. A corte portuguesa veio para a América sob a escolta inglesa em um claro alinhamento à Inglaterra em detrimento da França, países que se confrontavam no cenário europeu do ponto de vista político e econômico. A dependência em relação àquele país se expressou na assinatura dos tratados de 1810 que davam clara vantagem à Inglaterra para realizar o comércio com a colônia americana. No Rio de Janeiro, inúmeros ingleses, especialmente comerciantes, mas também representantes políticos e militares britânicos se estabeleceram a partir da transplantação da corte.

No Reino, os ingleses auxiliavam na resistência à invasão francesa. Se condecorar aliados era uma demonstração de fortalecimento das relações políticas, os ingleses não poderiam receber as ordens militares, pois não se submetiam à Santa Sé. Com isso, d. João, príncipe regente, restabeleceu uma ordem que havia sido criada no governo de d. Afonso V, em 1459 - a Ordem de Torre e Espada - por meio da carta de lei de 29 de novembro de 1808. No alvará que regulamentava a ordem, de 13 de maio de 1811, ele declarava explicitamente que havia estabelecido a mesma para marcar na posteridade a época em que felizmente aportei a este Estado, e estabeleci a ampla liberdade do comércio, franqueando-o a todos os navios nacionais e estrangeiros, mas também para premiar os ilustres e beneméritos vassalos d'el rei da Grã-Bretanha, meu antigo e fiel aliado, que me acompanharam com muito zelo nesta viagem, e aqueles dos meus vassalos, que antepuseram a honra de seguir-me.[5]

O resultado é que todos os primeiros agraciados na ordem, ao menos em seus maiores graus, eram membros ou da alta nobreza portuguesa que acompanharam a família real na viagem para o Brasil ou ingleses, como lorde visconde Strangford e Sir Sidney Smith, feitos grão-cruzes, e Graham Moore Comodore, Ricardo Lee, Carlos Schomberg, Diogo Walker e Thomas Western, todos comandantes de naus inglesas que acompanharam a corte e feitos comendadores. Entre os agraciados com a grã-cruz de Torre e Espada em 1811 estava Arthur Wellesley, lorde Wellington, que era o general britânico que havia comandado as tropas portuguesas contra o exército napoleônico. Ele recebeu ainda, na mesma data, o título de conde de Vimeiro.[6]

Em 1818, d. João criaria ainda a Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa em comemoração a sua aclamação como rei. Nela se percebe a necessidade que a Coroa tinha desses instrumentos enquanto forma de angariar serviços e fidelidade, pois o monarca inovou e ampliou o número de graus existentes nas demais. Se as ordens de Cristo, São Bento de Avis, de Santiago e de Torre e Espada eram compostas de três graus - cavaleiro, comendador e grão-cruz -, a Ordem da Conceição continha um quarto grau - o de servente. Da mesma maneira, se no momento da criação da Ordem de Torre e Espada, d. João previu um número máximo de pessoas em cada grau,[7] na Ordem da Conceição, embora tivesse feito o mesmo, deixou em aberto a possibilidade de ampliar esses números se assim considerasse necessário.

Até a chegada da corte, poucas pessoas tinham de fato acesso aos hábitos no Brasil. Eram as guerras travadas em território colonial como a expulsão dos holandeses ou o interesse da Coroa pela descoberta de metais preciosos que impulsionavam as condecorações.[8] Dentre os territórios coloniais portugueses, o Brasil apenas superou a Índia em número de hábitos lançados na segunda metade do século XVIII, mas, apesar disso, se comparados aos hábitos lançados na sede do Reino, eram ainda apenas 15% do total.[9] Em compensação, a quantidade de hábitos distribuídos por d. João durante sua estadia no Rio de Janeiro, entre 1808 e 1821, impressiona. Foram 3.635 cavaleiros, 443 comendadores e sete grãos-cruzes da Ordem de Cristo; 1.279 cavaleiros, 136 comendadores e seis grãos-cruzes da Ordem de Avis e 83 cavaleiros, 15 comendadores e oito grãos-cruzes da Ordem de Santiago.[10] Evidentemente, esses números não apontam apenas para agraciados que habitavam o Brasil. Como sede do Império Ultramarino português, do Rio de Janeiro eram condecoradas pessoas nos mais diferentes territórios portugueses. Esses foram os casos do hábito da Ordem de Cristo concedido ao tesoureiro-geral e deputado da Junta da Real Fazenda do reino de Angola, Manoel da Rocha Silva, em abril de 1809, do hábito de Avis ao tenente-coronel de infantaria do reino de Angola, Euzébio Castela de Lemos, em maio do mesmo ano[11] e da comenda de Avis concedida a Joaquim Vieira Abreu, coronel de cavalaria adido ao estado maior do exército, por ter descoberto uma mina de enxofre em Benguela.[12]

Portugueses que habitavam o Reino também tiveram suas recompensas como o hábito de Cristo concedido a Bernardo da Silveira Pinto da Fonseca, marechal de campo e quintas do mestre general da divisão de voluntários reais, que além de 24 anos de serviço militar havia atuado nas batalhas de expulsão dos franceses e participado da Restauração em Portugal[13] ou a comenda de Avis a Sebastião Valente de Brito Cabreira, tenente-coronel do segundo regimento de artilharia de linha, por serviços na restauração do reino de Algarves, atuando na junta de governo.[14] Além disso, pessoas que atuavam na própria América, mas fora do Rio de Janeiro, também eram lembradas pelo monarca como o hábito da Ordem de Cristo concedido a Bento Gonçalves da Silva, nome que viria, já no período posterior à independência, ameaçar o centro do Império durante a Revolução Farroupilha. Em 1820, contudo, ele era condecorado por seus serviços na fronteira no Rio Grande de São Pedro do Sul, região vital para a Coroa.[15]

Se a lógica portuguesa era construir uma hierarquia social que iria da alta a baixa nobreza, os graus existentes nas ordens honoríficas perfaziam essa mesma hierarquia. Contudo, a estadia da corte na América abriu a possibilidade de ampliação da presença dos habitantes da colônia entre essa nobreza ao menos nos níveis intermediário e baixo. Isso ocorreu, por exemplo, no caso dos chamados negociantes de grosso trato. Um grupo de enorme capital que atuava na colônia dominando diferentes setores da economia [16] e que, desde o período pombalino, havia sido retirado dos impedimentos estabelecidos para os grandes comerciantes se nobilitarem e ocuparem cargos. Antes disso, os títulos de nobreza, cargos e ordens honoríficas eram destinados apenas àqueles que não possuíam "mácula de mecânica", ou seja, que não exerciam ofícios considerados impuros, como era o caso do comércio. Muitos deles foram contemplados com comendas e hábitos de cavaleiros nas ordens militares portuguesas. Entretanto, é importante destacar que a Coroa portuguesa, embora preocupada em remunerar os serviços e a ajuda pecuniária de seus fiéis vassalos coloniais, promoveu um estreitamento do acesso deles às ordens.

Um exemplo disso é o fato de que foi possível identificar apenas 15 negociantes que habitavam a América entre os 443 condecorados com a comenda de Cristo no governo joanino durante sua estadia no Rio de Janeiro e nenhum entre os grão-cruzes. Em compensação nesses níveis mais altos havia uma grande concentração de homens já detentores de títulos de nobreza, muitos dos quais se transferiram com a família real para o Brasil. Por outro lado, eles se fazem pouco presentes na base de cavaleiros, onde o número de negociantes se amplia,[17] como o hábito da Ordem de Cristo concedido a Carlos José Moreira, identificado como negociante na cidade do Rio de Janeiro, em junho de 1808.[18]

Entre os serviços realizados para receber uma mercê estavam militares, civis, pecuniários e mesmo serviços de terceiros. Provavelmente, a presença maior ou menor de cada um desses variava dependendo de para onde se direciona a análise - cargos, títulos ou ordens honoríficas, por exemplo. Serviços de natureza militar poderiam ser utilizados para receber cargos como no caso da mercê do conselho de Fazenda dada a Miguel de Arriaga Silveira, que era desembargador de agravos da Casa de Suplicação do Brasil e ouvidor da comarca de Macau, por organizar uma expedição militar e expulsar piratas que invadiram a China, tendo ainda restituído todos os privilégios retirados pelo imperador chinês aos portugueses.[19] Da mesma maneira, a atuação militar servia para conceder hábitos, como o dado ao coronel comandante do segundo regimento de infantaria de milícias da corte, Custódio Moreira Lírio, por sua participação na campanha contra os revoltosos de 1817, em Pernambuco.[20] Pela mesma campanha, foi agraciado com a Ordem de Avis José de Mendonça de Almeida Corte Real que atuou no comando das tropas em Barra das Alagoas.[21] Não eram apenas as guerras na América que levavam aos prêmios. Francisco Elisiario de Carvalho, tenente-coronel do regimento de cavalaria, recebeu o hábito de Avis por sua atuação contra as tropas francesas em Portugal.[22]

Serviços de natureza civil também eram utilizados para o recebimento de cargos ou de hábitos. Esse era o caso da comenda de Avis concedida ao frei beneditino José Maria Rodrigo de Carvalho tanto por ter atuado na cadeira de instituições canônicas, quanto por ter participado da junta de governo da vila de Estremoz, em Portugal[23] ou o hábito de Cristo a Luiz Maurício da Silva que era governador da ilha de Santa Catarina.[24] Já Joaquim José Marques, cirurgião da Real Câmara recebeu o ofício de escrivão da Mesa Grande da Alfândega da cidade de Luanda por ter atuado como cirurgião-mor do reino de Angola por três anos.[25]

No processo de concessão de mercês era possível que uma pessoa recebesse um cargo, um título de nobreza ou uma condecoração honorífica por meio dos serviços realizados por parentes ou até por pessoas não relacionadas diretamente a elas. Esse é o caso, por exemplo, do título de conde de Linhares concedido ao filho mais velho do ministro d. Rodrigo de Souza Coutinho.[26] Evidentemente, a passagem do título de pai para filho é algo intrínseco a uma sociedade que concebia a nobreza como herdada por meio do sangue, embora o título tenha sido transmitido em consideração aos serviços enquanto político e diplomata de d. Rodrigo e dependesse de uma nova mercê feita pelo monarca. Isso demonstra que também os serviços podiam ser herdados como o hábito de Cristo recebido por Francisco Pedro Soares Brandão pelos serviços prestados por seu pai, José Joaquim Soares Brandão.[27]

Quando o parente não era falecido, ele muitas vezes fazia o requerimento solicitando a mercê por seus serviços para ser investido em outro. Em 6 de fevereiro de 1810, por exemplo, o brigadeiro José de Oliveira Barbosa, governador e capitão general do reino de Angola, escreve um requerimento solicitando o hábito de Cristo para seu filho José Tomás de Oliveira Barbosa.[28] Já Pedro Nolasco Pereira da Cunha, aproveitando-se de sua posição como brigadeiro graduado do estado maior do Exército, solicitou o hábito de Cristo para seu filho, José Pedro Nolasco Pereira da Cunha, argumentando que essas mercês eram concedidas a todos os oficiais superiores que requisitavam para seus filhos.[29] Não eram apenas pais e filhos que poderiam herdar serviços. Qualquer grau de parentesco era aceitável como no exemplo do conselheiro da Fazenda João Antônio de Araújo Azevedo. Ele recebeu, em maio de 1819, a comenda de São Pedro do Sul, o hábito de Cristo e virou alcaide-mor do Castelo de Vede por conta dos serviços prestados por seu irmão, o conde da Barca, que já havia falecido.[30]

Os serviços de caráter pecuniários eram extremamente relevantes para a Coroa portuguesa exilada na América. Várias das principais fortunas de negociantes que habitavam o Rio de Janeiro contribuíram direta ou indiretamente para o "real bolsinho" tendo depois recebido alguma mercê em retorno. As contribuições para as obras públicas, como, por exemplo, para a construção de aquedutos ou iluminação urbana, eram muito frequentes. Um grande negociante, Elias Antônio Lopes, doou sua própria residência, a Quinta da Boa Vista, para a Coroa, motivo pelo qual foi feito comendador da Ordem de Cristo e cuja esposa, Ana Francisca Maciel da Costa, recebeu o título de baronesa de São Salvador de Campos, um dos raros casos entre o capital mercantil fluminense. A lista de pessoas que forneciam ajuda financeira à Coroa era publicada na Gazeta do Rio de Janeiro, periódico que passou a circular na corte após a chegada da família real. As chamadas "subscrições" eram voltadas para a ajuda a questões específicas como a guerra contra os franceses em Portugal ou de maneira mais genérica para as "despesas do Estado". Várias dessas iniciativas partiam diretamente dos grandes negociantes da corte, como Amaro Velho da Silva e Fernando Carneiro Leão.

Uma outra forma de contribuição era o financiamento dos festejos reais realizados na corte como no caso de aniversários de membros da realeza. Para essas cerimônias erguiam-se "arcos do triunfo", muitos dos quais decorados pelos artistas franceses que haviam chegado em 1816, após o fim da guerra em Portugal e da restauração monárquica na França. Nessas ocasiões as ruas também eram decoradas com areia branca, folhagens, ervas perfumadas e flores. Além disso, era hábito salvas de artilharia e canhões, em grande parte à custa das fortunas existentes na América. Evidentemente, ao financiar esses eventos, contribuía-se para o engrandecimento e legitimação da dominação monárquica, de modo que eram serviços extremamente valiosos. Se o objetivo dessas ações era obter alguma mercê régia, nem sempre o resultado era compatível com o esforço empreendido e os recursos gastos, visto que a estratégia portuguesa era estreitar o acesso às principais honrarias, embora alargando a base. Contudo, se poucos alcançaram sucesso, aqueles que conseguiram eram sem dúvida nomes pertencentes às mais ricas famílias de negociantes da corte como as dos citados Amaro Velho da Silva e Elias Antônio Lopes, mas também as de Antônio Gomes Barroso e de Brás Carneiro Leão que receberam hábitos e comendas da Ordem de Cristo. Um neto de Brás Carneiro Leão, Paulo Fernandes Carneiro Viana, foi outro dos casos de titulação, pois virou barão de São Simão com apenas 14 anos. Em termos de títulos de nobreza, d. João concedeu apenas seis deles aos habitantes da colônia de um total de 120 feitos durante sua estadia no Rio de Janeiro.[31]

A presença de mulheres no processo de mercês é bastante diversificada. Embora não pareça ter havido qualquer impedimento para o recebimento de títulos de nobreza por elas, cargos e condecorações honoríficas eram elementos cujo acesso era mais restrito. Elas podiam, por exemplo, receber cargos, mas, sobretudo, devido à atuação ou propriedade de seus pais e maridos, como o caso de d. Violante Amália Thibant de Arbeville que adquiriu o ofício de escrivã dos feitos da Real Fazenda de Pernambuco. O motivo, contudo, era o falecimento de seu marido, Francisco Isidoro Thibant de Arbeville, possivelmente proprietário do ofício, de maneira que d. Violante foi deixada sozinha para sustentar suas três filhas.[32] Percebe-se na justificativa para a concessão da mercê o caráter de sustento do cargo. Entretanto, d. Violante provavelmente não iria exercê-lo, mas cedê-lo a alguém em troca de pagamento.

O mesmo acontecia com as ordens honoríficas. Se desde o fim do século XVI as mulheres, especialmente solteiras e viúvas, passaram a ser agraciadas, o objetivo não era que elas adentrassem de fato às ordens, mas antes as mercês funcionavam como uma espécie de dote, pois o hábito ou a comenda vinha com as chamadas tenças (pensões) ou pedaços de terra para serem administrados. Isso significava que os futuros maridos é que receberiam a condecoração e administrariam os proventos das mesmas. Havia, contudo, momentos em que a concessão não era feita a título de dote e, neste caso, a mulher poderia gerir os rendimentos, embora continuasse a não poder portar as insígnias, provavelmente por se considerar que o uso das mesmas por mulheres "rebaixava" o valor e o prestígio desses instrumentos. Apenas na reforma de d. Maria I, em 1789,[33] foi permitido que as mulheres o fizessem. Dessa maneira, a própria rainha e as infantas da família real passaram a utilizá-las. De todo modo, durante o período joanino, o número de agraciadas não foi expressivo e aquelas que o foram eram, em sua maior parte, mulheres pertencentes às camadas mais altas da população, como a Ordem de Cristo concedida à d. Caetana Alberta d'Alvaleda Negrão e à viscondessa de Mirandella.[34] Para além das ordens militares, foi criada, em 1804, uma ordem feminina - a Ordem de Santa Isabel -, para que d. Carlota Joaquina pudesse agraciar as damas que atuavam no Paço, mas tais honrarias eram concedidas em pequeno número.

Percebe-se assim que as mercês quer efetivadas na forma de títulos, condecorações ou cargos, foram instrumentos fundamentais de funcionamento da monarquia portuguesa. Elas apontavam para a lógica do serviço e era por meio dele que a coroa se fazia mais presente em todo o território Ultramarino. Serviços de natureza tão diversa como militares, pecuniários ou em postos civis eram mobilizados para se alcançar alguma distinção ou benefício e eram particularmente atraentes porque poderiam se converter também em uma espécie de herança transmitida em vida ou após a morte. Eram, portanto, elementos intrínsecos do modo de governar no Antigo Regime português.

[1] LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994. p. 111.
[2] MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Trajetórias sociais e governo das conquistas: notas preliminares sobre os vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 249-183, p. 253.
[3] Maria Beatriz Nizza da Silva afirma que "poucos titulares estão ligados à história colonial, se excetuarmos aqueles que vieram como governadores ou vice-reis". Também Ronald Raminelli destaca que "para todo o período colonial, nas capitanias do Estado do Brasil, os nobres titulados eram raridade", enquanto a Coroa concedia aos colonos com um pouco mais de facilidade títulos da baixa e média nobreza. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo; Editora Unesp, 2005. p. 15.; RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do novo mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. p. 17.
[4] Para a história das ordens militares no período medieval, confira: DEMURGER, Alain. Os cavaleiros de Cristo: as Ordens Militares na Idade Média (séculos XI-XIV). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
[5] Arquivo Nacional. Chancelaria-mor do Brasil. Registro das leis, cartas e alvarás, códice 48, v. 1.
[6] Arquivo Nacional. Avisos e portarias do governo do Brasil para várias autoridades de Portugal, códice 251, v. 2.
[7] Arquivo Nacional. Chancelaria-Mor do Brasil. Registro das leis, cartas e alvarás, códice 48, v. 1.
[8] Para os hábitos provenientes da expulsão dos holandeses ver: KRAUSE, Thiago Nascimento. Em busca da honra: a remuneração dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das ordens militares (Bahia e Pernambuco, 1641-1683). São Paulo: Annablume, 2012. E para aqueles relativos à descoberta de ouro nas Minas ver: STUMPF, Roberta Giannubilo. Os cavaleiros do ouro e outras trajetórias nobilitantes nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Fino traço, 2014.
[9] OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001. p. 459.
[10] Arquivo Nacional. Índice de Condecorações das Ordens de Cristo, de São Bento de Avis e de Santiago, códice 790.
[11] Arquivo Nacional. Conselho da Fazenda. Registro de avisos dirigidos à Secretaria, códice 33, v. 1.
[12] Arquivo Nacional. Ordens honoríficas (Ordem de São Bento de Avis), caixa 785.
[13] Arquivo Nacional. Ordens honoríficas (Ordem de Cristo), caixa 787 A.
[14] Arquivo Nacional. Ordens honoríficas (Ordem de São Bento de Avis), caixa 785.
[15] Arquivo Nacional. Ordens honoríficas (Ordem de Cristo), caixa 787 A.
[16] Para a atuação desses comerciantes ver: SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650-c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. E FRAGOSO, João: FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c.1750-1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
[17] Cf. SILVA, Camila Borges da. O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro/Secretaria de Cultura, 2010, p.115.
[18] Arquivo Nacional. Registro de avisos e portarias, dirigidas das Secretarias de Estado à Secretaria do Despacho do Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens, códice 183.
[19] Arquivo Nacional. Conselho da Fazenda. Registro de decretos e ordens régias, códice 36.
[20] Arquivo Nacional. Registro de avisos e portarias, dirigidas das Secretarias de Estado à Secretaria do Despacho do Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens, códice 183.
[21] Arquivo Nacional. Ordens honoríficas (Ordem de São Bento de Avis), caixa 785.
[22] Idem.
[23] Idem.
[24] Arquivo Nacional. Registro de avisos e portarias, dirigidas das Secretarias de Estado à Secretaria do Despacho do Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens, códice 183.
[25] Arquivo Nacional. Conselho da Fazenda. Registro de decretos e ordens régias, códice 36.
[26] Arquivo Nacional. Conselho da Fazenda. Registro de alvarás e cartas régias de mercês e propriedade, da Secretaria do Conselho da Fazenda, códice 29, v. 3.
[27] Arquivo Nacional. Série Conselheiro Soares Brandão, AP-16, caixa 3, pct. 05
[28] Arquivo Nacional. Família Oliveira Barbosa, notação: AP-03, caixa 1.
[29] Arquivo Nacional. Ministério dos Negócios do Brasil, Ministério dos Negócios do Reino, Ministério dos Negócios do Reino e Estrangeiros, Ministério dos Negócios do Império e Estrangeiros. Negócios eclesiásticos, notação: 6J-82.
[30] Arquivo Nacional. Ordens honoríficas (Ordem de Cristo), caixa 787 A.
[31] OLIVEIRA, Marina Garcia de. Entre nobres lusitanos e titulados brasileiros: práticas, políticas e significados dos títulos nobiliárquicos entre o período joanino e o alvorecer do Segundo Reinado. 2013. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 11 e 48.
[32] Arquivo Nacional. Conselho da Fazenda. Registro de decretos e ordens régias, códice 36.
[33] Carta de lei de 19 de junho de 1789. Livro das leis. Chancellaria-Mor da corte e Reino. Lisboa: Impressão Régia.
[34] Arquivo Nacional. Índices das condecorações das Ordens de Cristo, São Bento de Avis e Santiago da Espada, códice 790.

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