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Ataque ao Feliz Americano

Publicado: Quinta, 21 de Junho de 2018, 17h36 | Última atualização em Sexta, 20 de Agosto de 2021, 02h14

Inquirição na qual o desembargador presidente e os deputados da Mesa de Inspeção do Comércio e Agricultura da Bahia detalharam os artigos do apresamento do bergantim Feliz Americano, de propriedade de José Gomes Pereira. Relatou-se que o apresamento fora feito injustamente pelos navios ingleses, que escravos marinheiros foram capturados equivocadamente e que o bergantim e sua tripulação foram conduzidos de forma violenta e hostil, entre outros. Foram também explicitados os danos que a embarcação sofreu: havia “6.370 onças de fazenda” para o comércio negreiro que deveria render aproximadamente 579 cativos e que resultou em apenas 17 devido ao apresamento. Por fim era pedida a devida indenização pelos prejuízos sofridos “da Marinha, ou do Governo, ou da Nação Ingleza, ou de quem direito for”.

Conjunto documental: Junta do Comércio, Navegação. Navios negreiros aprisionados.
Notação: caixa 445, pct. 03
Datas-limite: 1811-1822
Título do fundo: Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação
Código do fundo: 7x
Argumento de pesquisa: repressão ao tráfico
Data do documento: 28 de abril de 1812        
Local: Bahia         
Folha(s): -      


Senhor desembargador presidente, e deputados da Mesa de Inspeção, e Agricultura[1] da Bahia

Justifique citado o cônsul da nação britânica[2]

Bahia, 28 de abril de 1812.

Diz Jozé Gomes Pereira negociante[3] nesta praça, que tendo sido apresado em seis de janeiro do corrente ano de 1812 na franquia do Porto Novo sobre a Costa da Mina[4] o bergantim de que ele era o único, e legítimo proprietário denominado = o Feliz Americano = Mestre, e caixa Manoel Izidoro Cardozo, apresamento que foi injustamente perpetrado pela fragata inglesa de guerra = a Amélia = Comandante Frederico Paulo Irby , que violenta, e hostilmente conduziu para a colônia de Serra Leoa[5] onde por iníqua sentença proferida pelo juízo do alto almirantado daquela estação, foi condenado por boa presa[6], fatos estes que em concorrência de outros de igual natureza já foram demonstrados e plenamente justificados perante este tribunal; pretende o suplicante provar agora que pelo dito apresamento, e sentença condenatória veio a perder, e se julga prejudicado em 97:332.00 réis[7] que quer haver do apresador, ou de quem direito for; e para o que requer a vossa senhoria de ser admitido a justificar os autos seguidos:

1º Que o dito bergantim[8] = o Feliz Americano = era um casco ainda novo e de boa viagem; foi construído nos estaleiros desta cidade por conta do suplicante, e fabricado inteiramente de madeiras do Brasil; que estava forrado de cobre, e bem preparado de todos os aparelhos necessários para a sua velejação, com panos, e amarras, aguadas, e dos demais utensílios, assim para a sua mareação, como para tráfico de escravatura[9], de que podia carregar 600 cabeças; por tudo o que valia na geral, e comum estimação deste continente, ao tempo em que se fez de vela desta Bahia para os portos da Costa de Mina em 11 de setembro de 1811, quando menos, 20:000//000// réis.

3º Que a bordo do dito bergantim se achavam embarcados ao tempo de sua partida, os doze escravos mencionados na carta junta em documento nº 1, e especificados na certidão da matrícula de nº 3, os quais escravos pertenciam a diversos senhores, tinha sido engajados por marinheiros, e faziam parte da tripulação; e não tendo sido restituídos pelo apresador mas antes tendo envolvido nos objetos apresados, há o suplicante direito de exigir o seu valor, como bens realmente perdidos, valor que não pode ser menor, atenta a sua idade, serviço, e disposição, que o de 200//000 réis cada um o que `ilegível] dar 2:400//000 réis.   

5º Que a dita fatura importando todas as suas despesas, e prêmio do seguro em 20:644//921 réis podia produzir na Costa da Mina, pela redução feita na conta nº 1 6370 onças[10] de fazenda, padrão este do valor, ou do termo de comparação a que todos os gêneros, segundo o antigo costume, e modo de traficar introduzido pelos Negros Potentados[11], que são os tratantes dos cativos, e que ao tempo em que o bergantim fazia sua negociação, estava bem prosperada porque o preço corrente, e mais geral dos escravos era então quando muito 11 onças por cabeça, incluindo neste número de onças as que se despendem com os gastos do navio, de sorte que as ditas 6.370 onças redução total de carga, como dito é, permutadas em escravos a 11 onças por cabeça dariam quando menos 579 cativos.

6º Que por princípio de negociação das 579 cabeças, que pelo menos deveria render a carga total, segundo a conta desenvolvida, e que não pode padecer dúvida, já se haviam permutado 17 cativos, que estando em terra na dita franquia de Porto Novo na ocasião em que se apresou o bergantim se puderam tirar da presa, e confisco, e foram recebidos a bordo do bergantim Conde de Amarante, que aí surgiu depois e os conduziu para esta cidade, e o suplicante se dá por entregue deles, cabeças, que deviam sair da negociação.

Para vossa senhoria, que sendo servidos de admitirem o suplicante a justificar os artigos deduzidos, jurando as testemunhas em separado, e depois conjunto, e corporalmente como é necessário no foro inglês sejam julgados neste tribunal por sentença, dando ao suplicante os autos originais, ou o translado, ou os instrumentos, conforme pedir; precedendo a inquirição a devida citação ao cônsul da nação britânica, para vir em juízo impugnar a conta, se quiser, visto que ele como representante da sua nação nesta cidade, é a parte autorizada e competente para responder nas ações que contra ela se propõe, intimando-se-lhe que nesta conformidade se há de passar sentença.

E receberá mercê[12]

 

[1] MESA DE INSPEÇÃO: as Mesas de Inspeção da Agricultura e do Comércio, ou Mesas de Inspeção do Açúcar e do Tabaco, começaram a ser implementadas no Brasil a partir de 1751 como parte da política iniciada pelo primeiro ministro do Império português, o marquês de Pombal, visando ao controle e revitalização do comércio entre colônia e metrópole, constituindo um instrumento importante da política mercantilista da Coroa. Foram criadas nas capitanias da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e Maranhão, inicialmente como um órgão independente do sistema fazendário e, depois de 1756, sob a jurisdição da Junta de Comércio de Lisboa, posteriormente Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. A Mesa da Bahia contava com a maior estrutura interna e era responsável pela inspeção de um volume maior da produção colonial de açúcar e tabaco. As principais funções das Mesas consistiam no controle e fiscalização da produção e qualidade do açúcar e tabaco, pela taxação dos produtos (incluindo valores de frete e armazenamento nos portos) e pelo combate ao contrabando. Aos fiscais, cabia: examinar os produtos; classificá-los conforme o tipo e qualidade; estabelecer o preço a ser cobrado, que deveria ser fixo para a praça de comércio; determinar os valores dos impostos e direitos a serem pagos; fiscalizar os pagamentos e confiscar os gêneros que não estivessem de acordo com o estabelecido pela Mesa. Competia ainda embalar as mercadorias, distribuir o carregamento entre os negociantes e gerir outras atividades ligadas ao comércio. Em decorrência dessas atividades, a Mesa vivia em constante conflito com os senhores de engenho e agricultores das capitanias, que reclamavam dos valores que eram obrigados a pagar por transporte e armazenamento, e dos preços fixados para o açúcar e o tabaco, sempre considerado baixo e deficitário para os produtores. No tocante ao progresso da agricultura, as Mesas se encarregariam de promover um estímulo à modernização da lavoura, propondo a introdução de novas técnicas e instrumentos, e implementando novas culturas. Eram compostas, salvo algumas variações, por um desembargador no cargo de presidente; dois inspetores – deputados da Junta – um do açúcar e outro do tabaco; dois deputados, negociantes da praça de comércio; além de um oficial régio, como secretário. A partir do final do século XVIII, com o crescimento da cultura de algodão, este produto também passou a estar sob fiscalização da Mesa, que também exercia fiscalização sobre o movimento portuário. Um dos desembargadores que assumiu a Mesa da Inspeção da Bahia foi José da Silva Lisboa, visconde de Cairu, indicado para o cargo por d. Rodrigo de Souza Coutinho em 1797. À frente da Mesa, o ilustrado procurou adequá-la aos novos preceitos da economia política, em acordo com o iluminismo português, e chegou a escrever uma memória sobre a situação da Mesa propondo melhoramentos na organização do comércio na capitania e uma reforma na estrutura do órgão.

[2]CÔNSUL DA NAÇÃO BRITÂNICA: representante da coroa britânica em território estrangeiro. Em solo brasileiro, com a transferência da família rela para o Rio de Janeiro e a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido de Portugal e Algarve, a presença de cônsules ingleses foi de fundamental importância para a manutenção e desenvolvimento das relações comerciais, bem como garantir o cumprimento das negociações entre os dois países, sobretudo, no que diz respeito ao cumprimento do acordo assinado em 1817 que proibia o tráfico de escravos acima da linha do Equador.

[3] NEGOCIANTE/ TRAFICANTE [DE ESCRAVOS]: a menção ao tráfico de escravos ou à traficantes de escravos, em especial no século XIX, quando medidas que colocariam fim a esse comércio começavam a ser implementadas, poderia evocar a equivocada imagem de um trabalho realizado à margem da lei, de um criminoso. Mas, na realidade, mesmo na época em que embarcações dedicadas a reprimir tal comércio cruzavam intensamente o Atlântico, os homens envolvidos com o tráfico negreiro eram, muitas vezes, vistos antes como um combatente ao que se considerava, no Brasil, uma afronta e uma ingerência nos assuntos internos – no caso, a pressão britânica no sentido de erradicar de vez o comércio de escravos –, e não como contrabandistas dedicados a uma atividade ilegal. Em geral, gozavam de boa reputação e uma posição de destaque na sociedade colonial, muitos eram membros da Real Junta do Comércio e Navegação, receberam títulos de nobreza e/ou hábito de ordens militares. Em sua maioria, eram de origem portuguesa que, dedicando-se à transações atlânticas, conseguiram se estabelecer e enriquecer em território colonial. Conhecidos como “homens de negócio” ou “negociantes de grosso trato”, concentravam em suas mãos a liquidez necessária para investir no comércio de escravos intercontinental, atividade que exigia grande investimento de capital e para cobrir os elevados custos da travessia atlântica e envolvia uma série de risco como a pirataria, os frequentes naufrágios e o alto índice de mortalidade entre os cativos. Mas, que também era altamente lucrativa, não apenas pela crescente demanda na América lusa, majorando o preço dos escravos, como por seus mecanismos de apropriação da mão-de-obra africana fundamentados sobretudo na violência e não em bases econômicas (RIBEIRO, Alexandre Vieira. O comércio das almas e a obtenção de prestígio social: traficantes de escravo na Bahia ao longo do século XVIII. Locus revista de história, v.12, n.2. Juiz de Fora, julho de 2006). Via de regra, o capital obtido no tráfico negreiro era superior a investimentos produtivos como engenhos e fazendas, logo esse pequeno grupo de agentes comerciais capazes de pôr em funcionamento a gama de mecanismos econômicos e de relações sociais indispensáveis para o comércio atlântico, iriam despontar como elite econômica colonial. O tráfico de africanos mostrou-se como atividade de acumulação mercantil endógena e os traficantes, possuidores de grandes fortunas, vão diversificar seus negócios, investindo no setor financeiro, de abastecimento interno e na compra de terras. Esta última medida se estabelece como esforço para garantir maior status social, creditado aos grandes proprietários rurais e de escravos. Ao poder econômico acumulado pelo setor mercantil, juntar-se-ia o poder político, segundo Manolo Florentino (Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias escravas no Rio de Janeiro, Brasil, 1790-1830. História: Questões & Debates. Curitiba, jul./dez. 2009), influenciando decisivamente os destinos do Estado. Vão ocupar órgãos da governança colonial, como os cargos da Câmara, visando o prestígio e o reconhecimento social. A partir de 1831, com a proibição do tráfico, os negociantes de escravos precisaram se adaptar, mas os navios negreiros continuariam suprindo a demanda por escravos na América até sua abolição final em 1850. É importante ressaltar a poderosa rede de financiamento e proteção que havia por trás destes comerciantes, sem a qual manter um comércio proscrito funcionando intensamente teria sido impossível. Bancos em Liverpool e Nova York, apenas para citar exemplos, financiavam resgate de navios tumbeiros apreendidos e leiloados, bem como o que mais fosse necessário para a empreitada.

[4]COSTA DA MINA: os termos Costa da Mina e Guiné por vezes se confundem, tendo não raro o mesmo significado em um único documento. Define uma região da África Ocidental localizada no golfo da Guiné, onde atualmente se encontra o Benim (antigo Daomé), Togo e parte de Gana. A sociedade que ali floresceu a partir do século IV encontrou seu auge em torno dos séculos IX e X da era cristã, com a exploração do ouro, que existia em abundância. Com o tempo, a região ficaria conhecida pelos portugueses como Costa do Ouro. Em 1470, navegadores lusos alcançam a região, estabelecendo o comércio de ouro. Em 1482, a coroa portuguesa consegue construir o Castelo de São Jorge, através de uma concessão do líder local, para garantir o tráfico de escravos da região e impedir quaisquer avanços dos reinos espanhóis. O termo "mina" era largamente usado como denominação genérica para designar a etnia dos escravos africanos ou descendentes no continente americano que vinham da região, muito embora muitos dos embarcados nesta região viessem de outras áreas mais ao interior do continente africano, portanto, de origem diversa. Em 1637, os holandeses invadiram o Castelo de São Jorge da Mina determinando que os navios sob bandeira portuguesa comprassem escravos apenas em quatro portos: Grande Popó, Ajudá, Janquim e Apá (mais tarde conhecido como Badagri) na região denominada Costa dos Escravos mais ao leste, onde hoje se encontra o Benim. Dessa forma, o termo Costa da Mina passou a se referir aos portos tanto da Costa do Ouro, quanto da Costa dos Escravos. A demanda por escravos na América conheceria significativo aumento no século XVII, mas apenas no século XVIII ocorreria o chamado ciclo da Mina, durante o qual cerca de 350 mil indivíduos foram escravizados e enviados para outras colônias portuguesas, sobretudo a Bahia. Eram trocados por fumo refugado em Portugal, mas ainda apreciado na África, em um esquema de escambo que, muitas vezes, passava por cima do comércio triangular (intermediado pela metrópole). Outras nações europeias também se estabeleceram na região (holandeses, ingleses, franceses), cada uma iniciando acordos com populações locais para o suprimento de escravos. No final do século XVIII e início do XIX, percebe-se um grande aumento na oferta de cativos na região, em decorrência de guerras locais, em especial a guerra religiosa (jihad) liderada por Dan Fodio que deu origem um grande império islâmico na África. As diversas etnias africanas (nagô, jeje, hauça), traficadas a partir da Costa da Mina para a Bahia promoveram o maior ciclo de revoltas escravas no Brasil colonial. O cabo de Palmas, marco inicial da região, foi utilizado como limite de apresamento legal, após os tratados de limitação do tráfico negreiro no século XIX [ver Abolição gradual do tráfico de escravos]. Com a extinção do tráfico humano, a região foi tomada pelos ingleses e tornou-se colônia britânica.

[5]SERRA LEOA: em meados do século XV, os portugueses chegam à região da África ocidental, então habitada pelos temnes, etnia islâmica local, com os quais passaram a comerciar escravos. O território foi ocupado pela Inglaterra no século XVII e, em 1786, uma companhia comercial britânica fundou a cidade de Freetown (cidade livre), que recebia ex-escravos refugiados do Canadá e do Reino Unido. No início do século XIX, a Coroa Britânica adquiriu parte do território, transformando-o em colônia. Após a proibição do tráfico de escravos [comércio da escravatura], em 1807, mais de 90 mil africanos interceptados em navios negreiros foram levados a Serra Leoa, onde passaram a enfrentar os temnes, numa luta que se prolongou até fins do século XIX. Apoiados pelos ingleses na luta contra os nativos, os ex-escravos acabaram por compor a elite do país.

[6]BOA PRESA: se um navio fosse capturado e, após o julgamento pela comissão mista, fosse considerado em atividade ilícita (ou seja, comércio de escravos fora dos limites impostos pelos tratados vigentes), seria considerado boa presa. O casco e a carga (exceto os escravos) seriam leiloados, e os escravos receberiam uma carta de alforria e colocados sob a responsabilidade do governo onde funcionava a referida comissão. {Ver também ABOLIÇÃO GRADUAL DO TRÁFICO DE ESCRAVOS].

[7]RÉIS: Moeda portuguesa utilizada desde a época dos descobrimentos (séculos XV e XVI). Tratava-se de um sistema de base milesimal, cuja unidade monetária era designada pelo mil réis, enquanto o réis designava valores fracionários. Vigorou no Brasil do início da colonização (século XVI) até 1942, quando foi substituída pelo cruzeiro.

[8]BERGANTIM: os bergantins eram navios de remos de traça, muito rápidos e de fácil manobra. Eram equipados com dez a dezenove bancos corridos de bordo a bordo. Envergavam tanto vela redonda quanto latina com um ou dois mastros. Nos primeiros tempos da presença portuguesa no Oriente realizavam as missões de contato, reconhecimento e transporte. Prestavam-se ainda a servir as fortalezas mais importantes, particularmente nas zonas onde a presença naval não era permanente. O bergantim era também uma embarcação de ostentação, favorito de monarcas e grandes senhores.

[9]TRÁFICO DE ESCRAVOS: uma das atividades econômicas mais lucrativas do período colonial, o tráfico de escravos oriundos da África foi responsável pela entrada de mais de 4 milhões de africanos no Brasil durante cerca de três séculos (Hebert Klein. A demografia do tráfico atlântico de para o Brasil. Estudos econômicos. Maio/ agosto, 1987). Alimentando-se de prisioneiros das guerras étnicas e, posteriormente, tribais que assolavam os reinos africanos, a procura por cativos foi fomentada pela expansão colonial baseada no sistema de plantation, dominante nas Américas, que se apoiava na mão-de-obra escrava. A pressão europeia pelo fornecimento de mercadoria humana levou à um crescimento exponencial da escravidão no continente. O tráfico negreiro resultou no chamado comércio triangular que envolvia África, Europa e América, integrados em um sistema de comercialização de diferentes tipos de riqueza: os escravos africanos, normalmente empregados nas grandes plantações de café, açúcar e algodão da América, eram trocados por tabaco, tecido, cachaça, rum ou armas na costa africana, ao longo da qual várias nações europeias acabaram estabelecendo feitorias para viabilizar o comércio. Transportados em navios tumbeiros ou negreiros, os escravos provinham principalmente do Senegal, da Gâmbia, da Costa do Ouro e da Costa dos Escravos, durante os séculos XVII e XVIII e do delta do Níger, do Congo e de Angola nos séculos XVIII e XIX. De acordo com os dados da The Trans-Atlantic Slave Trade Database – portal internacional de catalogação de dados sobre o tráfico atlântico –, navios portugueses ou brasileiros embarcaram escravos em quase 90 portos africanos, fazendo mais de 11,4 mil viagens negreiras. Dessas, 9,2 mil tiveram como destino o Brasil. A atividade mercantil teve sua expansão inicial entre os séculos XV e XVI – os primeiros escravos africanos chegaram ao Brasil com a expedição de Martim Afonso de Souza em 1530, vindos da Guiné e, em 1568, o governador-geral Salvador de Sá tornou-a oficial. Mas, foi entre os anos de 1750 e 1850, que o tráfico negreiro conheceu seu auge e teve como principal porto importador a cidade do Rio de Janeiro, sobretudo em função da necessidade de abastecimento da região das minas. O comércio de homens mulheres e crianças, tornava-se objeto de dupla exploração: a “mercadorização”, através do tráfico atlântico e a expropriação de sua força de trabalho dentro do sistema escravagista colonial nas Américas, gerando lucros extraordinários, apesar do custo elevado, das “perdas em trânsito”, como diria Manolo Fiorentino, referindo-se aos diversos riscos que envolviam a travessia atlântica (pirataria, epidemias, naufrágios) e das dificuldades para administrar tal atividade, sobretudo pela resistência africana a esse processo de coisificação (Maria Jorge dos Santos Leite. Tráfico Atlântico, Escravidão e Resistência no Brasil. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana. Agosto de 2017). Os traficantes de escravos, conhecidos como homens de negócios, foram os grandes beneficiários da atividade, tornando-se a elite econômica colonial, mas que precisavam recorrer a relações sociais mais amplas, tanto na metrópole quanto na América e na África, indispensáveis para o funcionamento do comércio atlântico de escravos. Segundo Jaime Rodrigues, o tráfico de escravos envolveu não apenas os africanos escravizados, mas toda uma rede formada por negociantes, feirantes, oficiais e marinheiros comuns, autoridades administrativas e colonos. (De costa a costa: escravos e tripulantes no tráfico negreiro. Rio de Janeiro/ São Paulo: Companhia das letras, 2005). Esse comércio de almas foi, durante séculos, tido como algo natural e justificado tanto economicamente quanto pela religião, que enxergava o processo de escravização como uma forma de levar a fé católica à povos infiéis. No entanto, no alvorecer do século XIX, filósofos liberais colocariam em debate a escravidão, iniciando uma intensa campanha abolicionista, liderada pela Inglaterra. Apesar das pressões britânicas pelo fim do comércio atlântico de escravos, que resultou na assinatura de diversos tratados abolindo a importação de africanos, como a lei Feijó de 1831, mas que seriam apenas “para inglês ver”, o tráfico negreiro, atividade econômica basilar no Brasil colonial, resistiria ainda meio século, mantendo-se, durante alguns anos, na clandestinidade após a proibição do tráfico de escravos em 1850.

[10] REFORMA DOS PESOS E MEDIDAS: com a unificação do território português surge a necessidade de padronização dos pesos e medidas no reino. Posteriormente, com a incorporação de novos territórios decorrente da expansão marítima e comercial, dos séculos XV e XVI, a preocupação com a uniformização dos pesos e medidas se estende a todo império ultramarino. A imprecisão das unidades de medidas usuais, que permitia fraudes, opunha-se à crescente importância de um sistema unificado e científico de pesos e medidas que facilitasse as transações comerciais, tanto no interior do império como entre as diferentes nações europeias. Apontando para uma tendência de uniformização dos pesos e medidas a nível mundial, em função do comércio e das trocas científicas, é adotado o “marco” em Portugal, medida de peso de uso corrente na Europa, por provisão, em outubro de 1488. Assim, observam-se diversas reformas e regramentos no sentido de estabelecer uma uniformização, e a partir do século XIX, a Academia Real das Ciências de Lisboa toma parte em algumas das comissões encarregadas das reformas. Ainda em 1812, é criada uma Comissão para o exame dos forais e melhoramentos da agricultura que, em conjunto com a Academia Real, propõe uma reforma baseada no modelo francês, mas que mantinha a terminologia portuguesa, de forma a atenuar a mudança. Finalmente, através de decreto de d. Maria II, em meados do século XIX, é implantado o sistema métrico decimal adotando a nomenclatura francesa. Até então, as unidades de medidas mais usadas em Portugal e, por conseguinte, no Brasil, eram: para comprimento, a légua (6.600 m), a braça (2,2 m), a vara (1,1 m) e o palmo (0,22 m); para peso, a arroba (≈15 kg), o marco (≈230 g), o arratel (≈460 g), a onça (28,691 g), o grão (50g) e a oitava (3,586 g). Já na pesagem do açúcar, utilizava-se o pão (63,4 Kg); o saco (75 Kg); o barril, a barrica e o tonel (120Kg); a caixa (300 Kg) e a tonelada (1000 Kg). Por fim, como medidas de volume, temos a cuia (1,1 l), a canada (2,662 l), o quartilho (0,665 l), o almude (31,944 l), o alqueire (36,4 l) e a pipa (485 l).

[11] NEGROS POTENTADOS: grandes líderes locais, que atuavam no fornecimento de escravos africanos para o mercado atlântico. Eles eram os responsáveis pelo aprisionamento de indivíduos no interior do continente africano e o seu transporte até o litoral, onde seriam negociados internacionalmente por comerciantes europeus. A captura de inimigos e sua redução ao estado servil eram práticas anteriores ao estabelecimento do tráfico de escravos pelos europeus, em geral consequência de guerras e conflitos entre diferentes reinos ou tribos ou por dívida. Os negros potentados, ao entrarem em contato com os traficantes, passaram a trocar estes prisioneiros por mercadorias do seu interesse e/ou apoio militar nos conflitos locais, onde conseguiriam mais cativos. Como o comercio internacional de escravos era uma atividade altamente lucrativa, os mercadores europeus dedicaram-se a transformar o cativo africano na principal mercadoria para o comércio no continente, mesmo que para isso fosse necessário instigar guerras e conflitos locais, de forma a aumentar a captura de possíveis escravos, desintegrando a antiga estrutura econômica e social dos reinos africanos.

[12]MERCÊ: o mesmo que graça, benefício, tença e donativos. Na sociedade do Antigo Regime, a concessão de mercês era um direito exclusivo do soberano, decorrente do seu ofício de reinar. Cabia ao monarca premiar o serviço de seus súditos, de forma a incentivar os feitos em benefício da Coroa. Desse modo, receber uma mercê significava ser agraciado com algum favor (concessão de terras, ofícios na administração real, recompensas monetárias), condecoração ou título pelo rei, os quais eram concedidos sob os mais variados pretextos. Em 1808, após a chegada da Corte portuguesa ao Brasil, foi criada a Secretaria do Registro Geral das Mercês, subordinada à Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, quando da recriação, no Rio de Janeiro, dos órgãos da administração do Império português. Tinha por competência o registro dos títulos de nobreza e de fidalguia concedidos como graça, benefício e recompensa pelo monarca. As formas mais frequentes de mercês eram os títulos de nobreza e fidalguia, com as terras e tenças correspondentes, os hábitos das Ordens Honoríficas, cargos e posições hereditários. A concessão de mercês era também uma forma do monarca balancear os privilégios entre seus súditos, mantendo os bons serviços prestados por quem já havia conquistado alguma graça e incentivando o bom trabalho dos que almejavam obtê-las. Com a transferência da Corte da Europa para a América, poder-se-ia crer que os súditos da terra passariam a obter mais mercês, mas a hierarquia que havia entre a metrópole e a colônia, reproduzida na concessão de benefícios acabaria por se manter na colônia, mesmo depois da elevação a Reino Unido. Poucos títulos de nobreza foram concedidos, uma vez que na América não havia a nobreza de sangue, de linhagem, mas somente a concedida por grandes favores prestados ao reino, políticos ou militares. Entre as ordens honoríficas observa-se que houve a concessão de mais títulos, mas a maioria de baixa patente ou menor importância, os mais altos graus ainda eram reservados para a nobreza metropolitana. Mesmo concedendo hábitos, títulos de cavaleiros, posições e cargos, as mercês reservadas aos principais da colônia eram inferiores àquelas reservadas aos grandes da metrópole.

 

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