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Apresamento de Navios Negreiros

Escrito por Super User | Publicado: Quinta, 21 de Junho de 2018, 17h19 | Última atualização em Quarta, 26 de Mai de 2021, 18h49

 Carta do inspetor da Contadoria José Caetano Gomes ao rei d. João VI, informando do requerimento enviado pelos armadores dos navios de escravatura apreendidos pelos ingleses. Segundo o documento, os armadores estavam reclamando suas perdas baseando-se no acordo firmado com a Inglaterra na Convenção de Viena em 1815.   Por este documento,  verifica-se os primeiros esforços da coroa britânica no sentido de por fim ao tráfico de escravos.


Conjunto documental: Junta do comércio, falências comerciais
Notação: caixa 369, pct.03
Datas - limite: 1813-1840
Título do fundo ou coleção: Junta do comércio, agricultura, fábrica e navegação
Código do fundo: 7x
Argumento de pesquisa: escravos, repressão ao tráfico
Ementa: carta do inspetor da contadoria, José Caetano Gomes à sua majestade:
Data do documento: 08 de outubro de 1821
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): _

“Acompanho a informação que me deram os dois contadores sobre o requerimento de José Tavares França, que baixou à Real Junta[1]  com aviso da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, de 28 de maio de 1821, e para vossa alteza[2]  conhecer a sem razão semelhante requerimento, vou resumir este negócio desde seu princípio. Os armadores dos navios de escravatura[3]  tomados pelos ingleses, fizeram as suas contas e justificações para reclamarem em Londres as suas perdas e lucros arbitrados. Com o ajuste da Convenção de Viena[4]  de 22 de janeiro de 1815, em que o governo inglês prometeu 300 mil libras esterlinas[5] e seus juros para sua majestade indenizar estas perdas, voltaram os autos que estavam na Inglaterra ao Rio de Janeiro. Por eles formaram os armadores um mapa, onde diziam qual era a sua perda real e o excesso das 300 mil libras serem lucros, a ratear pelos capitães desembolsados. Assinaram todos este mapa por si, e como procuradores[6]  de outros pedindo uma e muitas vezes a confirmação a sua majestade, que consultando esta Junta, assentiu à pretensão, conhecendo que sendo as 300 mil libras para eles, e consentindo todos unânimes era justo que se confirmasse o que pediam no mapa. Depois de muitos meses sem que no decurso deles aparecesse um só requerimento nesta Junta contra este mapa; depois de baixar a consulta à favor, José Tavares França, que tinha assinado por si, e como procurador de outros reclamou a sua assinatura, e as que tinha feito como procurador, com o pretexto de não ter poderes para ajustes, e haver no mapa quantias exageradas em alguns navios, em seu prejuízo. Consultou de novo a Junta e mandou sua majestade que não valesse mais o mapa, que se examinasse todos os autos dado por árbitros, para se conhecer a perda real de cada um, e fossem sentenciados os laudos segundo seu merecimento pela Junta.

Requer novamente José Tavares a sua majestade, pedindo que se lhe mande dar vista dos laudos em todos os autos, para dizer contra o que lhe parecesse. Consultou a Junta ser injusta esta pretensão ... que ia suscitar, sem outra utilidade mais que a de satisfazer paixões particulares de uns contra outros, e que só se devia permitir vista a cada um, para dizer sobre os seus autos o que lhe conviesse. Foi sua majestade servido assentir ao parecer da Junta.

Não fica ainda aqui José Tavares; torna a requerer a sua majestade contra a confirmação das sentenças de três navios, designado quantias excessivas dadas pelos árbitros. Foram os autos chamados à Junta e examinados nela escrupulosamente, se achou ser uma calúnia, e falsas as alegações, o que assim se consultou a sua majestade que mandou escusar o requerimento, sem mais consequência.

Agora pretende novamente sem título algum ser tesoureiro de ausentes para receber as pequenas carregações de particulares, e soldados não pagos, de que já foi repelido por uma consulta.

Quer que se lhe paguem fretes de gêneros, que foram em navios tomados de que ninguém se lembrou ainda, e despesas feitas com os processos há tantos anos, anos depois de estar tudo acabado, e não merecem atenção, por se deverem em tal caso contemplar todos os interessados, que sendo tantos nenhum o fez, sendo lhe reservado esta lembrança tão fora de tempo. Parece-me que deve ser escusado o requerimento do suplicante. Vossa alteza real mandará o que for servido O deputado inspetor da Contadoria José Caetano Gomes. ”

 

[1] REAL JUNTA DO COMÉRCIO (BRASIL): em 23 de agosto de 1808, em consequência da abertura dos portos ao comércio estrangeiro, foi estabelecida no Brasil a Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, em substituição à Mesa de Inspeção do Rio de Janeiro, incorporando suas funções. Foi organizada segundo o modelo da Real Junta do Comércio de Lisboa, instrumento de fiscalização e gestão do comércio ultramarino, importante no fomento à atividade agrícola e industrial. A junta acumulava funções judiciais e administrativas e entre suas funções, destacam-se: matricular os negociantes de grosso trato e seus caixeiros; regular a instalação de manufaturas e fábricas; cuidar do registro de patentes de invenções; conceder provisões de fábricas; administrar a pesca de baleias; faróis; estradas, pontes e canais; importação e exportação; além de solucionar litígios entre negociantes; dissoluções de sociedades mercantis; administração de bens de negociantes falecidos ou de firmas falidas ou em concordata, entre outros. Teve como primeiro presidente o conde de Aguiar, Fernando José de Portugal e Castro, que tomou posse em 18 de maio de 1809. Contam-se entre seus deputados, negociantes de grosso trato que exerciam o tráfico de africanos, evidenciando o papel de destaque dessa atividade no Brasil, o que incluía o recebimento de comendas como a Ordem de Cristo entre outras distinções. (FLORENTINO, Manolo et al. Aspectos comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (Séculos XVIII e XIX). Afro-Ásia, 31 (2004), 83-126).

[2] JOÃO VI, D. (1767-1826): segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, se tornou herdeiro da Coroa com a morte do seu irmão primogênito, d. José, em 1788. Em 1785, casou-se com a infanta Dona Carlota Joaquina, filha do herdeiro do trono espanhol, Carlos IV que, na época, tinha apenas dez anos de idade. Tiveram nove filhos, entre eles d. Pedro, futuro imperador do Brasil. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada incapaz. Um dos últimos representantes do absolutismo, d. João VI viveu num período tumultuado. Foi sob o governo do então príncipe regente que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência dessa invasão, a família real e a Corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da Real Biblioteca; criação de escolas e academias e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, retornou com a Corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente.

[3] NAVIOS DE ESCRAVATURA: pouco se sabe como eram os navios que transportaram milhões de africanos escravizados pelas rotas de comércio do Atlântico. Segundo Jaime Rodrigues, no Dicionário da escravidão e liberdade (2018), são narrativas de viajantes e ilustrações de artistas estrangeiros que nos trazem limitadas informações do que representou a migração forçada de africanos para o continente americano. Chamados navios negreiros ou tumbeiros foram se transformando e adaptando-se ao comércio de mercadoria humana ao longo dos mais de três séculos em que cruzaram o oceano. O tráfico de escravos para o Brasil fazia-se em diferentes embarcações, no entanto, usualmente, eram navios bastante manobráveis devido as águas rasas dos ancoradouros africanos; velozes, para escapar da marinha britânica após a proibição do tráfico em 1831, e baratos, para atenuar os prejuízos em caso de naufrágio ou captura. Ainda segundo Rodrigues, em seu artigo Dossiê Tráfico Negreiro (História Viva, abril de 2009), na Bahia encontravam-se os principais estabelecimentos para construção e reparo desses navios, utilizando como matéria prima as madeiras obtidas no nordeste brasileiro, transportadas por indígenas até o litoral. Mas, foi o porto do Rio de Janeiro que registrou o maior número de entrada de navios negreiros na América, principalmente após a transferência da Corte no século XVIII, onde também seria instalada a infraestrutura necessária para construção e reparo naval. Tais embarcações realizavam a travessia atlântica atulhadas de negros cativos – de cem a seiscentas pessoas de acordo com a capacidade da embarcação –, muitas vezes numa quantidade maior do que seria suportada. Os escravos eram separados por sexo, mantidos nus, amontoados, com as mãos ou pés atados, acorrentados uns aos outros, mal alimentados – numa tentativa de diminuir sua resistência – e sujeitos a doenças. Passavam toda ou grande parte da viagem, que poderia durar de um a três meses, no porão do navio – divididos em três patamares, com altura de menos de meio metro cada um. Eram locais úmidos, mal ventilados, apertados e mal-cheirosos. O índice de mortalidade era bastante elevado – seja pelas epidemias que assolavam os navios ou pela violência da tripulação –, chegando a 1/4 do número de pessoas embarcadas. Rebeliões eram frequentes, e algumas revoltas resultavam na conquista da embarcação pelos escravos, como a do navio espanhol Amistad, em 1839. Capturados por um navio de guerra norte-americano, foram julgados pela Suprema Corte dos EUA, que os declarou livres, de acordo com o direito internacional que proibia o comércio de escravos. Os navios de escravatura transportaram cerca de 12,5 milhões de africanos para outras terras, sobretudo na América. O Brasil foi o país que mais recebeu escravos negros, um total de 4,8 milhões de africanos.

[4] CONGRESSO DE VIENA (1814-1815): em setembro de 1812, Napoleão Bonaparte ocupa a capital russa, Moscou, certo de que seria o primeiro passo para uma dominação sobre o Império czarista. No entanto, o czar Alexandre recusa a rendição, e os invasores franceses logo se viram em uma cidade abandonada por seus habitantes e deliberadamente queimada por eles. Com sérios problemas de abastecimento e escassez crônica de víveres, encurralado pela chegada iminente do inverno, ao exército francês não resta outro meio a não ser a retirada em uma situação cada vez pior: a saída deu-se com as armas inimigas em seu encalço. A perseguição se estendeu por meses a fio e, enquanto o exército russo atravessava a Europa Oriental e Central a caminho da França, uma aliança de apoio começou a se formar, liderada pela Áustria e Prússia e com o apoio da Grã-Bretanha. Assolados pelo frio e pela fome, perseguidos pelos inimigos russos, os soldados chegam de volta à pátria em reduzido número, esfomeados e maltrapilhos. Em março de 1814, o exército de Alexandre entra em Paris e sela o desastre bonapartista. Apesar do seu breve retorno durante alguns meses no ano seguinte, a era de guerras e política imperialista promovidas pelo monarca francês chegava ao fim. Napoleão parte para o exílio na ilha de Elba, de onde sairia no ano seguinte para tentar retomar seu império. O período de ilusão durou cem dias, interrompido pela derrota em Waterloo diante dos britânicos, depois da qual partiria para seu último exílio na ilha de Santa Helena. A aliança formada em torno da Rússia atuou no Congresso de Viena, iniciado em setembro de 1814, tomando para si a tarefa de “reconstruir a Europa”, muito nos moldes do que havia sido antes da ascensão de Napoleão. O objetivo do congresso era, além de reorganizar o mapa político europeu, reestruturar as relações entre seus diversos estados, incluindo aí suas colônias e políticas comerciais. Determinava, então, que as antigas monarquias europeias depostas por Napoleão reassumissem seus tronos, no entanto a monarquia portuguesa estava estabelecida no Rio de Janeiro desde 1808, uma situação considerada ilegítima, sendo Lisboa a sede do governo reconhecida pelo congresso. Para contornar tal objeção, foi necessária a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarve. Além disso, encerrou a chamada “Questão Caiena”, marcada pela discussão entre Portugal e França acerca da delimitação de suas possessões na América pelo rio Oiapoque. Como resultado das discussões em Viena, a França concordou em recuar os limites de sua colônia até a divisa proposta pelo governo português. Entretanto, somente em 1817, Caiena foi realmente devolvida à França, após a assinatura de um convênio entre este país e o novo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve. A questão do tráfico de escravos africanos, também foi abordada pelo congresso. A pressão inglesa contra o comércio da escravatura, iniciada em inícios do século XIX, resultou na interrupção do tráfico ao norte da linha do Equador. Esse acordo comprometia áreas importantes de abastecimento de mão de obra escrava na América portuguesa. Em 1817, d. João VI ratificou a decisão e, por um novo acordo, concedeu à Inglaterra o direito de visita e busca nos navios suspeitos de tráfico em alto-mar, sob pena de terem sua carga jogada no oceano. O tom do congresso, como não podia deixar de ser, era abertamente conservador. As nações mais apegadas às fórmulas do Antigo Regime (Portugal, então metrópole do Brasil, entre elas) apostaram em um recuo das ideias liberais e no fortalecimento do colonialismo. Contudo, se uma onda conservadora varreria a Europa, ela não foi capaz de impedir o desenvolvimento e avanço do liberalismo político por muito tempo e muito menos o de conter o movimento de libertação das antigas colônias, em especial, nas Américas. O colonialismo ganharia outras feições, teria outros senhores a comandar de forma diferente antigos territórios, mas o modelo ibérico encontrava-se esgotado.

[5] LIBRA ESTERLINA: unidade monetária e moeda inglesa, que após a revolução industrial começou a ser aceita internacionalmente.

[6] PROCURADOR: na esfera pública, como funcionários do Estado, os procuradores atuaram em cargos providos pelo rei, como o procurador dos feitos da Coroa, por exemplo, cargo criado em 1548, e tendo por finalidade representar a Coroa nos assuntos relativos à Fazenda. Também foram providos em cargos como o procurador dos índios para dispor sobre a validade do cativeiro indígena, ou representaram instâncias como as Câmaras municipais, representando as oligarquias locais do Brasil ou de Goa por exemplo, junto às Cortes. Ainda no âmbito privado encontra-se a figura do procurador em contratos de arrematação de negociantes, que da colônia disputavam os contratos na metrópole por meio de procuradores, como nos casos da cobrança de tributos, adquirindo ainda participação nas sociedades (Luiz Antônio Silva Araújo, Contratos na América portuguesa (1707-1750) Disponível em https://www.academia.edu/download/56270738/Artigo_Encontro_Aracaju.pdf).

 

Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”
No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”

Ao tratar dos seguintes conteúdos:
A escravidão no Brasil colonial
A montagem do sistema colonial
A sociedade colonial: práticas e costumes
O tráfico de escravos da África para a América
 


 

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